sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Das tripas coração

Três semanas. Incríveis três semanas. A sua pele já se esverdeava, as olheiras eram cavernosas. Impossível dormir, pensar, trabalhar. Já eram três dias sem bocado também, não havia espaço. Sentia náusea de pensar nisso. O médico não sabia o que fazer: era um paciente difícil, só queria remédios e se negava a aceitar qualquer intervenção além disso; “me recuso”, dizia ao óculos do doutor.

Em seu apartamento bem decorado, aos seus 52 anos, estava sentado na cama, pensando como poderia estar naquela situação. Tomou tudo o que lhe foi receitado e, mesmo com dificuldade, aceitou seguir algumas receitas que leu na tela do computador. Nada funcionou. Três semanas. Hoje é exatamente o vigésimo primeiro dia. Assim como pesquisou por receitas, poderia procurar se era um recorde ou algo assim, mas não lhe passou pela cabeça. Só a ideia fixa, que descia pelo peito e chegava no abdome, baixo-ventre, e enrijecia. A dor e a imobilidade, todas ali, naquela espessura, no concreto que havia parado o giro alegre de sua outrora denominada “betoneira”.

Os fracassos oficiais e alternativos fizeram-no cético. Desistiu de tudo e resolveu, verdadeiramente, deitar e morrer daquilo. Das mortes, talvez uma das mais infaustas: iria morrer de constipação intestinal. Deitou-se na cama, sentindo as agulhadas e o peso de seu interior. Quando encontrou a posição mais cômoda, largou-se a lembrar da vida. “Vou morrer disso, quero pelo menos aquele replay dos que vão embora”. Obviamente, não estava ainda morrendo, mas buscou tudo o que podia. Frustrado, só lembrava, contra a própria vontade, das manhãs de jornal sentado à privada. Do conto que certa vez o estagiário degenerado do escritório lhe havia passado, que terminava com um casal lendo o futuro em suas próprias fezes. De um filme que abandonou sem terminar quando aquela bichinha drogada mergulhou na privada. “Eu mergulharia de felicidade agora”, disse.

Foi então que as trevas de seu ceticismo se alumiaram e ele enxergou a luz: nos tempos de estudante, havia que ir à biblioteca, e lá, inexoravelmente, bastava parar diante das compridas estantes e passar os olhos sobre as lombadas, que logo vinha uma profunda necessidade, um chamado vindo de seu âmago biológico, pré-humano... de ir ao banheiro. Ao lembrar-se disso, quase que sentiu algo se movendo dentro de si. Superando as dores, levantou-se, calçou as sandálias e saiu de seu apartamento. Desceu as escadas evitando impactos fortes, alcançou a garagem, subiu em seu carro, começando a travessia em direção do outro lado da cidade, aonde estava o campus universitário.

“Qual era a prateleira? Será que mudou tudo de lugar?”, eram as suas dúvidas, percorrendo as avenidas, passando os semáforos, reconhecendo seu eu daquele então, aqui e acolá em pontos de ônibus esparsos, nas costas arqueadas sob mochilas.

Não foi fácil estacionar seu sedã enorme, como deve ter sido para quem ia ao campus de carro há duas décadas atrás. Ao descer do veículo, suado, notou que dois rapazes riam e pareciam estar fotografando a traseira. Dirigiu-se à entrada da biblioteca. Agora havia uma catraca eletrônica. Teve que passar por ela como visitante, “eu, que tantas vezes passei aqui, sem catracas!”. A rampa ainda era a mesma: quinze passos e virada em 180 graus, mais quinze e outra virada. “Prateleiras são fáceis de mudar, mas não encanamentos”, pensou, e foi andando em direção de onde se recordava procurar os seus livros. Sem se surpreender, notou que a prateleira correspondente aos assuntos de então não havia mudado de lugar. Era apenas mais comprida e mais alta. Por um momento, esqueceu-se do que havia ido fazer, e passou a perguntar-se o que leriam os estudantes de agora quando fossem pesquisar os temas que ele mesmo necessitou pesquisar. Foi olhando lombadas, andando aos poucos, até ser absorvido pelas etiquetas numeradas. “Eu ainda sei o tema a que cada conjunto desses números se refere...”. Já alcançava o fim da prateleira, puxando pelo topo da lombada um ou outro livro para lhe ver a capa, quando notou que seu caminhar era meio abaixado, cruzando as pernas ligeiramente: estava se segurando, mesmo.

Foi apressado ao banheiro que logo ali estava e entrou na primeira cabine que viu aberta. Fechou a porta, abaixou as vestes (“nem papel coloquei em cima do assento!”) e posicionou-se sobre a privada. Esperava sem qualquer temor de ser decepcionado: a sensação de que algo iria acontecer era nítida. Com satisfação, certo de que havia resolvido seu problema, começou a olhar ao redor os dizeres, os desenhos. Taludinho safo 99918407, dizia aqui; Quero chupar, dizia ali. Legaliza de uma vez - a sua mãe!, dizia lá, como em um diálogo de duas caligrafias. O box era um verdadeiro palimpsesto. Uma inscrição lhe absorveu totalmente a atenção. Não era feita a caneta: havia-se feito com a ponta de um compasso, com um estilete ou canivete, na única parte do box que não era de madeira, a parede direita. Distinguia o sulco de um nome incompleto, que foi absorvendo as camadas de tinta rala, passada ano após ano sobre o cimento liso. As lágrimas começaram-lhe a correr pelo rosto, os soluços iam, ritmados, preenchendo o espaço do banheiro. Lembrou-se. A biblioteca para fugir. As lombadas, para perder-se. A parede, para tentar esquecer.


A dor no ventre ia-se embora, agora, ao ritmo lento de seu esvaziar-se.

domingo, 30 de novembro de 2014

Sylvia: La venganza nunca es buena...

...mata el alma y la envenena. Por ello, lo que voy  a decir, tómelo por el lado amable.



Resumo do episódio de hoje: Sylvia Colombo levanta um saco cheio de objetos duros e pesados por sobre o ombro, sem olhar direito se vinha alguém atrás, e termina acertando em cheio as fuças de quem admirou o trabalho de Roberto Gómez Bolaños. Sylvia não sabe, mas ela é protagonista de um episódio do Chaves .
O texto de Sylvia, "Menos Chaves, mais Cantinflas", é uma peça de, como dizer... provincianismo cultural. Sim, esta moléstia da que supostamente sofremos os brasileiros, para cujas pústulas Sylvia se dedica a apontar em sua labor na Folha. Perdoe-se minha superficialidade no que segue, isto é apenas um mimo do estilo sylviano, mas se é possível reduzir o trabalho de Bolaños àquilo que lemos na diatribe da moça, pode-se reduzir a própria moça a dois textos de sua autoria: este sobre o Chaves e outro sobre a morte de Wando. Ambos dão a mesma sentença: o brasileiro é ignorante e provinciano. Sobre a morte de Wando e o brasileiro: "A comoção nacional e o elogio de seu legado deixam evidente nosso provincianismo"; sobre a morte de Bolaños e o brasileiro: "A exaltação do personagem conhecido aqui como Chaves é mais do que um sinal da imensa ignorância dos brasileiros com a cultura dos países latino-americanos". Pobres de nós, Sylvia, os ignorantes, os provincianos. Mas fica o consolo: toda província possui a manjada figurinha do intelectual provinciano, aquela pessoa mais estudada, que olha, lamentosa, para o estado de indigência de seus concidadãos, e admoesta-os e ensina-os por meio de suas colunas no jornaleco local, a rocha de que brota o manantial de sua sapiência. Sylvia é essa figurinha. Mas, no fundo, Sylvia é, também, uma romântica. Não posso duvidar de seu conhecimento sobre a história, política e intelectual, da América Latina. Por não ter essa dúvida é que arrisco a tese psicanalítica: ficou-lhe tão profunda a impressão de ter lido os intelectuais da emancipação latino-americana de fins do século XVIII e começo do XIX, os intentos de instruir a colônia através da nascente e depois pujante imprensa local, que hoje esta impressão se manifesta ao modo de um cacoete, digamos, "de luzes": alguém precisa trazer o saber, a Ilustração para estes pobres espíritos brasileiros... Daí vem essa morbidez de chicotear os ignorantes no exato momento em que vertem lágrimas por algum de seus ídolos de barro recém quebrados.

Vamos ao texto. Nada mais provinciano do que diminuir o trabalho de uma pessoa pela comparação com os trabalhos, completamente díspares, de outras pessoas, como o fez Sylvia. O que têm em comum Buñuel e Chespirito? Fizeram audiovisual em espanhol. Digo audiovisual como traço mínimo de comunidade, já que, de cinema a televisão, haja distância! É certo que Chespirito também se aventurou no cinema e é correto que Buñuel tem, em "Los Olvidados", uma obra com um toque de realismo documental e, ao mesmo tempo, algo de surrealismo que, como produto final, é um grandioso filme acerca da injustiça social mexicana. Mas, de onde vem Buñuel? Em que ambiente intelectual se desenvolveu? Quem o influenciou? É uma comparação improcedente: em sua atividade como cineasta, Bolaños trabalhou  apenas com o humor e a sátira. Rulfo e Chespirito? Tematizaram o México. Digo "tematizaram" porque, de conto, romance e fotografia (nem mencionada, esta, por Sylvia) sobre os conflitos rurais e o coronelismo (Rulfo) a televisão sobre temas urbanos (Chespirito), há distância, Sylvia, distância. Octávio Paz e Chespirito? Expressaram-se em espanhol. Digo expressaram-se em espanhol porque, de ensaio e poesia (Paz) a televisão (Chespirito)... etc. Qual é o termo de comparação aqui? Intui-se que algo como "a pobreza na sociedade mexicana". Eis o pomo da discórdia nos dias que correm: todos se arrogam o direito de ditar como é que realmente se deve representar a pobreza nas artes e, em geral, como é que os oprimidos devem ser figurados. Um campo farto de tensões, sobre o qual a única certeza é: nenhuma representação, jamais, agradou a todos. Campo no qual, aliás, a escolha de trabalho de Chespirito sempre se mostrou em desvantagem: há obras consideradas magistrais, provindas da literatura, do cinema, da fotografia; no caso da televisão, parece-me, nada existe com essa magistralidade. Sylvia poderia iluminar a província com algum exemplo, já que furtou-se em seu texto de nos trazer um artista que tenha feito grandiosidades como as de Rulfo, Paz, Cantinflas e Buñuel para a televisão, no formato e no gênero em que o fez Chespirito.

E Cantinflas? Bem, aqui, Mario Moreno Cantinflas surge numa posição especial: Sylvia vaticina mais Cantinflas, menos Chaves. De alguma forma, há uma certa equivalência de posição, dentro da qual um deve ser trocado pelo outro. Há uma possível saída pela tangente: diz-se para ver menos "Chaves" (a série) e mais Cantinflas, e não para desprezar toda a obra de Bolaños e ficar apenas com Cantinflas. Saída falha: Chaves não é cinema. Mas não afirmo que Sylvia responderia com essa saída, apenas já quero eliminar a possibilidade. É menos Bolaños, mesmo; menos comoção, ó, incultos! Logo vem a comparação que perpassa o texto: como Buñuel, Rulfo e Paz, Cantinflas, sim, que conseguiu uma obra que trouxesse os problemas sociais do México à tona e, além disso, por meio do humor; Bolaños, não, seu humor é raso. É "vitória" certa. Ou não. Deixado de lado o fato de que Cantinflas é cinema, enquanto a parte da obra de Bolaños que o tornou conhecido não é cinema, resta a análise dos personagens, das situações dramáticas. É aqui onde Sylvia parte para o ataque.

Vamos por partes.
1. "Para um produto cultural latino-americano ser consumido com êxito no Brasil, precisa ser assim: folclórico, tonto, mostrando que o outro é atrasado". Não, Sylvia, o sucesso do "Chaves" não se deu por conta do "atraso do outro" de que ríamos, mas, sim, por conta do de te fabula narratur, uma identificação com o outro.
2. "Comecemos pelo nome do personagem. Ele nunca se chamou Chaves. Para entender a expressão “el chavo del ocho” (o rapaz do oito), porém, é necessária alguma intimidade com o idioma espanhol e sua coloquialidade. Muito complicado, certo? Fácil, chamamos de Chaves mesmo, sem nos importarmos de que fica completamente estranho tratar um garoto comum pelo sobrenome, dando-lhe um formalidade inexistente na série original _basta ver que os outros personagens são chamados só pelos apelidos.". Sylvia, assim como soaria estranho chamar um "garoto comum" pelo sobrenome, igualmente soaria estranho chamar um garoto qualquer de "O garoto". A situação é estranha para os dois idiomas. Compartilho, em parte, com a sua discordância: "Chaves" parece muito com um sobrenome, não com um apelido. O "chavo del ocho" virou "Chavo" por antonomásia, era o único "chavo" sem nome da vila. Agora, pense: o que os tradutores brasileiros podiam fazer? "O garoto", sinceramente, seria uma porcaria. A solução que eles encontraram, por acaso, é incrivelmente coerente com o trabalho de Bolaños: a maioria dos (se não todos) personagens cujos papéis ele interpretou tinham o nome começado, tal como seu nome artístico, por "CH", daí Chavo, Chapulín, ChapatínChaparrón, Chómpiras. "Chaves" não foi tão mal, no fim, e nos diz muito mais acerca da dificuldade dos tradutores para encontrar alguma homofonia do que acerca da nossa ignorância provinciana.
3."Quando somos crianças e adolescentes gostamos de coisas estúpidas, dizemos coisas estúpidas. Muito mais grave é chegar à fase adulta e mandar a observação, cheia de sabedoria, de que um programa tão raso como esse trazia uma espécie de “alta filosofia” embutida. 'Chaves' não é 'cult', é ruim mesmo". Que mania essa, típica de aspirantes a intelectuais entre os 18 e 30 anos, de sentir um certo prazerzinho em "negar" o "status" de "cult" a coisas e pessoas que nunca pretenderam sê-lo, não? Há de ter sido um lapso de idade seu, Sylvia. Não sei com quem você anda por aí, mas atualmente, quem se pretende "cult" anda com camisas de Stanley Kubrick, exalta na fila do pão as qualidades do cinema iraniano e nunca, nunca mesmo, admitiria assistir a televisão aberta. "Cult", Sylvia, hoje, aqui na província, é um estatuto paradoxal,  é chamar de "alienado" quem não suportar dez segundos de Valesca Poposuda (é feio e incorreto, hoje, achar ruim múscia pop-popular) e, ao mesmo tempo, dizer que só vai naquele cineminha em vias de quebrar, que só passa festival Truffaut, pois os cinemas de shopping são insuportáveis. Mas é claro, você não está a falar de pessoas, e sim de produtos culturais. Eis que o Chaves jamais foi para ser "cult", não possui, de saída, nenhuma das características do "cult". Chamar de não-algo um produto cultural que que se mantém como não-algo há mais de trinta anos é uma trivialidade, Sylvia.

4. "Os roteiros eram estúpidos, os textos, fraquíssimos, as piadas, preconceituosas e machistas _basta ver como são retratadas as mulheres no programa. Temos a menina histérica de vestido curto, a mulher mandona cheia de bobs no cabelo, ou uma mais velha, que sem rodeios é chamada de “bruxa”. Sem contar o modelo masculino (seu Madruga), um sujeito folgadão, desbocado e autoritário, a homofobia implícita de seu discurso e suas atitudes." Opa, aqui, temos que ir por subpartes! Os roteiros, caso não tenha notado, Sylvia, eram variáveis. Seu texto é curto, por isso não vou exigir que mencione pelo menos um roteiro, sei que vida de intelectual é corrida aí fora da província. Peguemos um, "Las Estadísticas": a criançada quer brincar na rua, mas, diz o professor Girafales (com J de Jirafa, em espanhol), de acordo com as estatísticas de atropelamentos, é muito perigoso. As pessoas simples da vila entendem ao contrário: não são os atropelamentos que geram estatísticas de atropelamentos, mas as estatísticas é que tornam provável que alguém vá ser atropelado. Não sei você, Sylvia, mas aí vejo uma sátira ótima de como as estatísticas influenciam o senso comum e chegam a ser reificadas. Não são os "atrasados" que se comportam assim, Sylvia, somos nós, acossados pela racionalidade científica. E esses textos "fraquíssimos"? Poderíamos olhar pelo menos uma linha  (sei, vida intelectual corrida etc., deixe o caipira aqui trazer um...), que tal "en primer lugar, no hay trabajo malo, lo malo es tener que trabajar", frase célebre de Don Ramón ("Seu Madruga"). Ele a diz a Dna. Florinda, quando esta ri-se dele por estar trabalhando como compra-vendeiro de artigos usados. Primeiro: um desafio à senhora acomodada, que vive de uma pensão do estado e faz troça da condição e fama de sujeito quebrado de Don Ramón. Segundo: em uma frase, a questão à "ética do trabalho" que foi imposta pelos impérios dominantes aos dominados nas Américas: os "nativos" não gostam de trabalho, são vagabundos... não, senhor! trabalhar, nós trabalhamos, mas jamais fomos obrigados a fazê-lo. E quem conhece o Chaves, sabe: Don Ramón sempre se dispôs a trabalhar, mas como autônomo, o que dá o contexto necessário para entender este exemplo de texto "fraquíssimo". Agora, vamos às piadas preconceituosas e machistas: "basta ver como são retratadas as mulheres", você diz, Sylvia. Onde você vê a "menina histérica de vestido curto", eu vejo uma criança que não liga para como se veste (inclusive com o casaco torto), é mais esperta que todos os meninos da série, não faz diferença entre "brincadeiras de meninos e de meninas" e, inclusive, é a líder da banda da vila, cabendo a ela puxar o som: "a la wan, a la chú, a la wan, chú, tre!". E mulheres "mandonas" como a Dna. Florinda, não existem no mundo? E não existem nas artes? Descartemos até a Dna. Katerina Marmeladova, de Crime e Castigo! E a "bruxa"! Céus, crianças jamais colocaram apelidos nas pessoas, nem na realidade, nem na ficção. Os adultos vivem lembrando às crianças: "é senhorita Clotilde!", mas é insuficiente: Bolaños insiste em mostrar crianças como elas são, cheias de imaginação. E esse "modelo" do Don Ramón. Ah, Sylvia, aqui a coisa se complica. Acho que não há personagem do Chaves por quem as pessoas guardem mais carinho do que pelo "Madruguinha". Já falei de como ele é "folgadão", tem um certo pensamento sobre o trabalho que desagrada aos mais afeitos ao "obter o pão com o suor da testa". Aqui é interessante mostrar-lhe como o mesmo Cantinflas faz um personagem folgadão e machista, que diz que nunca irá trabalhar e que vai se mudar para a casa onde a noiva trabalha como doméstica, comer às custas do patrão dela e ficar com a metade do seu salário. Claro que a minha intenção aqui não é cobrir de dejetos o genial Cantinflas, tal como você, Sylvia, faz com Bolaños. Amo o cinema de Cantinflas, como amo o trabalho de Bolaños. Mas já que você insiste na comparação, tome aí uma cantinflada. Você também vai encontrar o seu Madruga dizendo à Chiquinha que ela não pode gostar de futebol. Mas, fazer o que, Sylvia? Tanto Bolaños quanto Cantinflas viam um certo machismo no homem mexicano.  Machismo e "malandragem", que você pode encontrar nesta outra cantinflada, em que o personagem de Cantinflas "rouba" um beijo da personagem ultra-decotada. Um primor de objetificação da mulher, não lhe parece? Quanto a "desbocado", realmente não se entende o que você quer dizer. Palavrões, jamais os diz, Bolaños não era idiota para colocar isso em um programa infantil. Tentei auxiliar-me com o dicionário, mas nada encontrei no "Madruguinha" que o caracterizasse como alguém que usa vocabulário obsceno. Ficará para a disciplina da hermenêutica sylviana saber o que você quis dizer. "Autoritário"? Sim, com as crianças, e ao resto, só obedecia. Aquela banda da Chiquinha o estava atazanando, ele a quis deter, mas sob a ameaça da palma de Dna. Florinda e da altura do Prof. Girafales, só restou-lhe entrar em casa e socar miolo de pão nos ouvidos. Agora, a parte mais difícil de falar sobre: a "homofobia implícita em seu discurso".  De fato, ao longo de trinta anos do programa do Chespirito (aqui abrangendo chapolim, chaves, los caquitos, los chifladitos, dr. chapatín etc.) houve algumas piadas, muitas repetidas, como a da "pose do atirador", por exemplo. Agora, repreensão aberta e violenta à  homoafetividade, isto, Sylvia, não há. No máximo, um "que pasó, que pasó, vamos ay" do seu Madruga, e outras reações, em geral, mais ligadas ao próprio machismo de que falava anteriormente. Preconceito, Machismo e Homofobia... faltou falar do Racismo, Sylvia: Bolaños nunca selecionou atores com visível origem nativa para o show de Chespirito, a não ser como figurantes. Tivesse-o feito para o Chaves, estaria sendo racista também, ao colocar pessoas com traços nativos num contexto de pobreza da vila. Agora, acusá-lo de "perpetuar" qualquer um desses preconceitos é ir longe, às raias da paranoia. Ou ter um dedo muito seletivo. Aliás, já me alonguei tanto que me esqueci: o dedo Sylvia tem esse tesão mórbido, de erigir-se contra cadáveres frescos. De fato, Bolaños não foi um revolucionário, não dedicou seu trabalho a reverter os problemas. Como tampouco o fizeram outros cineastas, escritores, artistas plásticos e, inclusive, intelectuais. Imagino-lhe, Sylvia, no ano de 1986, no dia 25 de junho, Jorge Luis Borges ainda sendo velado: "Mais Arlt, menos Borges - Arlt dedicou-se a trazer de forma contundente as mazelas sociais da urbe bonairense, Borges encerrou-se em seu castelo intelectualista eurocêntrico -sua admiração pela sabedoria arábica e oriental era pura erudição eurocêntrica também-, quando dele saia, era para ressuscitar o gaúcho mítico, sua figura e sua lírica, e seu machismo: lembrem-se da Juliana sacrificada pelos dois irmãos no conto "La intrusa". Jamais se posicionou explícita e cabalmente contra a ditadura nos anos 70. Chorem esse Borges aí, ignorantes, provincianos, afeitos a idealismos e labirintos". Brincadeira, Sylvia, você não escreveria isso. 

5. "Mas o pior é passar essa ideia de uma pobreza estereotipada latino-americana. A equação da série é essa: Chaves é um moleque de rua, mas é muito espirituoso. É pobre, dorme num barril, mas é um cara feliz. É ignorante, mas emite frases cheias de sabedoria, como “foi sem querer, querendo” (oi?). Ou seja, o programa reforça todos os chavões que ajudam a perpetuar uma sociedade desigual, onde é chique veranear em balneários como Acapulco e perfeitamente natural que exista uma distinção óbvia entre “gente de bem” e “gentalha” ". Já abordei o tema da pobreza, "o pior". Agora vejamos essa "equação da série". Confunde "ignorante" com inocente, não, Sylvia? As frases de Chespirito consideradas "cheias de sabedoria", geralmente partem dos adultos da vila e do Chapolim. Certamente, "fue sin querer queriendo" não está no rol das "cheias de sabedoria". Procure em "la venganza nunca es buena, mata el alma y la envenena". Se você não compreende que aí está colocado que um ciclo de violência se perpetua quando atos de vingança são levados a cabo; se não enxerga aí a história latinoamericana dos ciclos infinitos de vinganças inter-familiares, seus olhos andam muito mesquinhos, Sylvia. Sabe, não afirmo que Bolaños quis dizer isso: quero dizer que a frase simplória permite pensá-lo. Vamos à equação de novo: Chaves é pobre, mas feliz, é ignorante, mas diz coisas espirituosas, logo ajuda a perpetuar as injustiças. Não. "El chavo del ocho", especificamente, nada disso faz. Porque não sabemos do futuro do menino Chaves. Não sabemos, por exemplo, o que fará do aprendido com o seu Madruga, seu "pai" na vila, que dá um jeito de criar a filha sozinho, endividado, e mesmo nessa condição precária, ainda tenta ajudar o Chaves como pode, pois não consegue dormir sabendo da sua fome. O mais que se pode dizer é que "El chavo del ocho" é uma série em que o tempo é estático: não aspira ao futuro e não revisa o passado, não afirma como o primeiro deve ser, nem como o segundo deve ser lido. Acuse-a, então, mas disso: sua neutralidade pode ser uma omissão. E só. E tal acusação, ainda que não tão desvairada como a de causalidade, resta ainda inócua, uma vez que a posição de prescritor de deveres aos artistas inexiste, e quem quer que se arrogue a ocupá-la não tem a mínima condição de fundamentar tal direito, a não ser que afirme provir este de alguma sorte de fonte divina, quer dizer, o puro delírio de grandeza. 

6 (e último) "Para os que veem em Chaves um retrato romântico da pobreza latino-americana, pergunto ainda se têm ideia daquilo que o criou e que tanto lucrou com o sucesso do personagem: o grande império midiático chamado Televisa, maior conglomerado da língua hispânica, acusado de financiar campanhas eleitorais e de ter um forte lobby no Congresso". O famoso "argumentum ad hitlerum". Tempo há que não o via. Sabe, Sylvia, eu me pergunto se os colecionadores, admiradores e aspiradores a possuírem um Fusquinha têm ideia daquilo que o criou e que tanto lucrou com o sucesso do modelo: o grande império automobilístico chamado Volkswagen, uma das maiores fabricantes de automóveis do mundo, com uma forte participação no esforço de guerra do Terceiro Reich (usando trabalho escravo, inclusive). Pergunta idiota, não? O que Ferdinand Porsche e sua equipe, criadores do Fusca, tem a ver com isso? E Bolaños? O canal onde ele criou o Chaves (Canal 8, daí "Chavo del Ocho") foi comprado pela Televisa (em resumo, já que o processo tem mais detalhes), lá era onde ele tinha as condições de continuar criando. Será que Sylvia Colombo vai algum dia abdicar de escrever para a Folha, por seu envolvimento passado com o Golpe de 64? Bolaños não podia prever o futuro, mas Colombo já sabe do passado. Enfim, este parágrafo inteiro está assim esdrúxulo porque julgar Bolaños e os fãs de Chaves pela Televisa é esdrúxulo.  Quem gostou e gosta de Chaves não deve necessariamente pensar na Televisa. Quem gosta de Fusca não deve necessariamente pensar em Hitler. Quem segue a coluna de Sylvia Colombo não deve necessariamente pensar em 64.

É isso. Não terei paciência para uma tentativa engenhosa de fechamento. Cansei. Vou-me pro barril.

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Meu pitaco de fácil leitura

Estimulado pelo último bramido -de meu conhecimento- acerca do "caso" Patrícia Secco, dou aqui o meu pitaco sobre o assunto. Os conhecidos deste desconhecido que vos fala já sabem algo do que penso sobre isso, por lista de e-mail ou por debate em sala de aula.

Do que apareceu na imprensa, os únicos ditos que julgo razoáveis são os de José Miguel Wisnik, publicados n'O Globo, sob o título "Machado Copidescado", e de José Maria e Silva, no Jornal Opção (com este, tenho discordâncias, abordadas adiante). Wisnik faz um escrutínio linha a linha de algumas páginas, demonstrando a falta de metodologia de Secco, cujas simplificações são desnecessárias em alguns pontos e inexistentes em outros (que, caso houvesse alguma consistência metodológica, pediriam uma modificação). Maria e Silva chega apontar até inversões de sentido. Estes são os únicos argumentos de valor, os quais subscrevo, pelo menos quanto à formalidade do raciocínio: somente a má qualidade é que pode ser julgada.

Somente a má qualidade. As demais invectivas e protestos da mais profunda indignação estão, a meu ver, viciados de preconceitos e falsos dilemas. E estes apresentam-se (novamente) elencados na coluna de Sérgio da Costa Ramos de hoje, publicada no Diário Catarinense. Recebi-a por e-mail, em formato JPG, pois é conteúdo para assinantes. Coloco a imagem aqui:
 
Começarei pelo mais tolo: a "adulteração" da obra de Machado. Este já havia sido propalado pelos autores da petição online "Ministério da Cultura do Brasil: Impeça a alteração das palavras originais nas obras da língua portuguesa". O sofisma é montado por meio da sobreposição de duas coisas diferentes: a) uma lei para proteger a obra dos autores; b) uma mentira descarada. 

Invoca-se a lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998:

Art. 24. São direitos morais do autor:

IV - o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra;

§ 2º Compete ao Estado a defesa da integridade e autoria da obra caída em domínio público.

Art. 27. Os direitos morais do autor são inalienáveis e irrenunciáveis.


Esta, vê-se, trata da "integridade" da obra no que diz respeito a proteger o autor de "prejuízo" ou de ter as "reputação ou honra" atingidas. Ora, onde é mesmo que há "prejuízo" a Machado no caso em questão? Qual é a natureza desse "prejuízo"? Ninguém o diz, e admitem os autores da petição esta nebulosidade: "Ora, ainda que se interprete a presente lei, argumentando "ausência de prejuízo" a Machado de Assis (ou a qualquer autor falecido), tal interpretação é subjetiva e contestável. Consideraria o autor aceitável tal modificação em sua obra? Como sabê-lo?"

Em seguida, passa-se a elencar as "boas" modificações. Estas são adaptações em sentido estrito: para quadrinhos, teatro, cinema etc. Pois bem, como sabem nossos defensores de Machado que ele mesmo aceitaria aquelas e não as da Sra. Secco? Não o sabem! Sugerem também que, no máximo, sejam colocadas notas de rodapé. Novamente, já que invocam a impossibilidade de se ter a opinião de Machado, pergunte-se: Machado aceitaria notas de terceiros? O critério "Machado aceitaria" é de uma tolice sem par. 

Ao fim da petição, logo após o elogio das "boas adaptações", parte-se para a mentira descarada: "O teatro faz isso, o cinema faz isso. Livros são adaptados. Todavia, nestes casos, há a informação CLARA E EXPLÍCITA de que se trata de versão, adaptação [...] O leitor tem o direito de ser claramente informado que NÃO está lendo o autor original, e sim um texto modificado por outro autor". Muito bom que haja gente assim preocupada, empenhada em proteger o público desta informação OBSCURA E IMPLÍCITA, que leio na terceira folha do "boneco" da edição-Secco d'O Alienista:





Voltando ao artigo de Costa Ramos, é desta sorte de legalismo infundado, visto acima, que padece a opinião que o colunista cita em seu artigo, ao invocar as palavras de Deonísio da Silva, do qual se diz que irá acionar o Ministério Público. Consta na citação: "A senhora Secco não tem direito de fazer o que fez. A obra de Machado de Assis não é dela. É patrimônio do povo brasileiro".  Ora, e qual patrimônio está sendo lesado? Será que a Sra. Secco foi aos arquivos da Biblioteca Nacional e procedeu à sua "criminosa" emendatio?

A via pseudo-jurídica que se tenta trilhar nestes casos é, a meu ver, sem saída: não esclarece o prejuízo à obra, nem os ataques à honra ou à reputação.

Em meus ouvidos, as palavras de Deonísio da Silva ecoam com força: ela não tem direito - DireitO - DIREITO! Podem estar a dizê-lo em sentido estritamente jurídico; eu ouço um pouco mais: é o som de um preconceito acadêmico, de um espírito de guilda. Acadêmico universitário e Acadêmico de Academia de Letras, posto que a ABL também emitiu uma nota de repúdio (que não encontro em parte alguma, nem pesquisando no site da ABL, mas dizem que foi publicada em 07/05). É o preconceito contra o outsider, aquele que não tem o papelucho pendurado na parede, uma honraria da ABL (ou academia de letras estadual), um prêmio literário, uma carreira universitária de humanidades, uma obra acadêmica. Costa Ramos refere-se a Secco como a "professora", com aspas, e a "maquiadora", sem aspas, denotando que ela não é professora. Torce o nariz para a soma "milionária" auferida via Lei Rouanet. De fato, foi pouco mais de um milhão, para a produção de 600 mil exemplares: um custo de menos de dois reais por exemplar - mais barato que uma edição do Diário Catarinense. O horror: ela vai GANHAR dinheiro com isso! O horror: dinheiro "público". O horror: 1/5 do que auferiu Claudia Leitte para uma turnê; pouco menos do que auferiu Rita Lee para gravar um DVD... e, vá lá, um pouco mais do que Humberto Gessinger, para gravar o seu DVD de comemoração de seus 50 anos. O irônico é que todos eles obtiveram mais recursos do que os obtidos pelo Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística (NuPILL), da Universidade Federal de Santa Catarina, para tornar acessível online, em parceria com o MEC, toda a obra de Machado de Assis. De todas maneiras, não se trata de justificar um "erro" com outro. Trata-se, primeiro, de aceitar que, nas regras do jogo de hoje, nada há de imoral no projeto da Sra. Secco. Pelo contrário, como hei-de sugerir, há um vazio, que, sem alternativas melhores, foi preenchido por ela.

O artigo que cito lá no começo, de Maria e Silva, chega a adjetivar Patrícia Secco como "escritora-empresária". Ironicamente, o artigo é também uma invectiva contra a cultura do diploma; o problema é que o faz em nome de um ideal de "alta cultura", mencionando intelectuais self-made, do calibre de Graciliano Ramos e do mesmo Machado de Assis. Inclusive, chega a sintetizar o gênio político de Machado na criação da ABL, que visaria a instituir a Literatura como uma entidade para além do livro, fazendo-a povoar o imaginário social como uma via de ascensão. Porém, o tempore, o mores!, os esforços de Machado nesse sentido deram bom fruto, mas não uma farta colheita. Por mais gente que concorra a feiras literárias e eventos em torno da cultura escrita, a  popularidade do esporte e da música pop (não confundir com MPB) enquanto vias de ascensão econômica e social é muito maior. E por mais genioso que tenha sido Machado ao criar um espaço em que se unem política e literatura, o fato é que a ABL nos dias de hoje confere honrarias a sujeitos do porte intelectual de Ronaldinho Gaúcho. Bela patacoada: um dos caminhos para ser premiado pela Instituição das Letras é ser um jogador de futebol. No espírito dos "abaixo-assinadistas", pergunto-me se Machado concordaria com isso.

Tanto Maria e Silva como Costa Ramos sentenciam: o estado da educação atual é que tem que ser modificado, não Machado de Assis. Ora, para começar, o material é distribuído, se professores e bibliotecários o vão utilizar, é lá com eles. Em seguida, quanto ao estado da educação, sejam lá quais forem as máculas do trabalho da Sra. Secco, esta não seria a primeira medida inerme a ser tomada: a mais recente de que me lembro foi a distribuição de tablets. Para ensaiar um calembour: escandaliza-me o escândalo. Não me dei ao trabalho de investigar o que fazem cada um dos comentaristas de notícias e notas acerca da famigerada adaptação. Sei que encontrei (aliás, ao estilo de Costa Ramos) coisas como "acabaram com Machado". E sei também que as condenações, em grande medida, partiram de pessoas que atuam na docência superior de Letras -há não pouco tempo-, soando-me natural que alguns dos comentários que lhes seguem o tom sejam partidos de seus discentes e, claro, pessoas já formadas e atuantes, também há não pouco tempo, na docência escolar. Todos eles, e este que escreve, fazemos parte do problema. Pode-se chamar o trabalho da Sra. Secco de porcaria, deturpação, lixo, mas a ideia de fazê-lo partiu de uma situação pela que todos nós, educadores, somos responsáveis. 

A partir daqui, e para concluir, cumpro o que prometi logo acima: afirmo que há um vazio, preenchido pela Sra. Secco na falta de alternativas. Antes de haver despontado esta celeuma, para mim, "leitura fácil" significava: texto leve, sem complicações, lido e entendido com rapidez. Pois eu estava enganado, pelo menos em parte. E acredito que muitos estão comigo. Pelo menos em se tratando de língua portuguesa. Eis que "leitura fácil" é também um conceito, elaborado por pesquisadores das áreas de Letras, Psicologia e Educação (principalmente). Uma busca no google scholar  para "leitura fácil" apresenta  1690 resultados. Nenhum dos vinte primeiros resultados refere-se ao conceito de "leitura fácil". Procurei por alternativas, "fácil leitura", "leitura facilitada", mas nada obtive nos primeiros vinte resultados. Em espanhol, "lectura fácil" devolve 9 dos vinte primeiros resultados referindo-se ao conceito. Se associarmos aos termos a expressão inglesa do conceito (easy-to-read) na busca ("leitura fácil / "lectura fácil" + easy-to-read), para o português, o número total de resultados cai para apenas 10, sendo que há um deles referindo-se ao conceito: um artigo de Portugal. No caso do Espanhol, o número total cai para apenas 38; no entanto, já os 20 primeiros resultados são referentes ao conceito.  Para citar um exemplo de instituição com especialistas no assunto, remeto o leitor a este artigo informativo, que fala acerca do trabalho desenvolvido na Universidad Autónoma de Madrid e outras na União Europeia. Este artigo também remete ao chamado "pai" das diretrizes da Leitura Fácil da International Federation of Library Association (IFLA), Bror Ingemar Tronbacke. Resultados de busca no google scholar para [Tronbacke + leitura] ? 1 (Hum): uma monografia, defendida na UFPB, em 2011, acerca da surdez na biblioteca. Para [Tronbacke + Lectura]? 48 (quarenta e oito). Ainda segundo o dito artigo, o público alvo  da Leitura Fácil, dentre outros, é composto de "lectores con suficiencia lingüística (en la lengua oficial o predominante) y/o habilidades lectoras transitoriamente limitadas: inmigrantes recientes y otros hablantes de lengua no nativa; analfabetos funcionales y personas en desventaja educativa, y niños" (grifos meus). Ora, não estão aí incluídos nossos estudantes escolares e até 38% dos estudantes de nível superior?

Esses números são conhecidos de nossos irados articulistas, colunistas e seus séquitos. Talvez os números respeitantes à quase nula discussão do conceito de Leitura Fácil disponível na internet seja-lhes desconhecido. Não posso ser leviano ao ponto de afirmar que no Brasil não se faz pesquisa e produção de material levando em conta o conceito de Leitura Fácil, baseando-me apenas numa "googlada". Mas posso, sim, afirmar que, se há, ainda é pouca, insuficiente. Há um vazio, dentro do qual flutuam quadrinhos, "versões infantis" e "versões infanto-juvenis", no qual pôde entrar, com desembaraço, o famigerado Machado-Secco. Acostumados todos com a situação indefinida, deu-se o choque. Ao ponto em que houve rasgar de túnicas e arrancar de cabelos face ao trabalho da Sra. Secco -concordo, cheio problemas. Este vazio precisa ser preenchido, e, segundo pude perceber, o primeiro a ser feito é ter conceitos postos no lugar. 

Assim como os mais pernósticos dos peralvilhos lançarem-se a esfregar nas fuças do mundo a diferença entre "adaptação" (teatral, cinematográfica, para quadrinhos) e "isso" que "escritora-empresária" e "maquiadora" fez, deveria alguém sopapeá-los com a diferença entre Leitura Fácil e adaptação? Se as adaptações, como não cansamos de nos lembrar, sempre existiram, por que estamos na situação educacional que os detratores da Sra. Secco esgrimem como motivo para impedir a distribuição da obra? 

Meus amigos mais à esquerda costumam "postar" no facebook uma frase que já não sei se é de Bertold Brecht, Ghandi, Malcolm X ou Burke. Algo como: "se os bons não fazem nada, o mal triunfa". Pois então, meus amigos, pois então... 

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Esperança, Raiva, Saudade, Desesperação: Cartas de amor!

Eis que voltei, ó leitor! Adianto-te que hoje me dou a liberdade de te tratar por “tu”, parece mais cômodo ao escrever neste momento. Mas não acredites que isso diminui o infinito respeito que por ti nutro!

Hoje vamos de recomendação. Venho recomendar-te um livrinho que me caiu nas mãos, divertido, belo, inspirador: tudo o que um livro precisa ser. É de poesia e se intitula Cartas de Amor. A autora é Paola Rettore e contém colaborações de poetas, artistas plásticos e “performers”. É um livro bilíngüe, com textos em espanhol e português. Diria até trilíngüe, pois há um quê de “portunhol” em alguns passos. Ainda o acompanha um DVD, com vídeos das performances de Marcelo Kraiser.

O que farei aqui é o seguinte: vou mencionar passagens que tiveram grande significado para a humilíssima pessoa que aqui se dirige a ti, leitor. Assim, não afirmo que elas são o que há de melhor no livro, apenas indico os momentos que, a meu ver, corroboram as palavras da personagem de um filme de que gosto muito –que, claro, conheces, leitor–, O carteiro e o poeta: “a poesia não é de quem fez, mas de quem precisa dela” (essa é a idéia, pelo menos; não lembro literalmente...).

Nas Cartas de Amor lêem-se, se não todos, pelo menos quatro dos principais componentes da experiência do amor. Refiro-me, claro, ao amor, digamos, erótico, que envolve desejo, um tanto de possessividade, ciúmes... Quais os componentes? Hei de mencioná-los como em tópicos, e a ordem nada diz sobre a importância dos termos, ela é aleatória: Saudade, Esperança, Desesperação e Raiva.

Começarei pela Raiva, que é um sentimento expresso de forma muito divertida. A passagem que cito está na primeira Carta (sempre que o texto estiver em espanhol, acrescentarei uma tradução). Sabes, leitor, aquela reação diante de um afronta amorosa que parece ser “canonizada”, a famosa “vou-rasgar-todas-as-cartas&fotos”? Bem, a Carta em questão encontra uma alternativa muito do jocosa, indo um pouco além da simples destruição das fotografias:

Voy a romper todas tus cartas. Voy a cortar todos tus rostros que aparecen en las fotos. Voy a pegar una foto de una sandía, no, de una vaca en lugar de tu rostro. (...) Hoy por la mañana empecé a odiarte. Antes de despertar aún te amaba y soñé contigo y te parecías a Nicole Kidman. Pero ahora pienso en ti y te veo con la cabeza de vaca. Imagino que estás fumando con la cara de vaca y botando humo por la nariz de la vaca. MUUU. Vete, vete. MUUU.

[Vou rasgar todas as tuas cartas. Vou cortar todos os teus rostos que aparecem nas fotos. Vou colar uma foto de uma melancia, não, de uma vaca no lugar do teu rosto. (...) Hoje de manhã comecei a te odiar. Antes de acordar ainda te amava e sonhei contigo e parecias-te com a Nicole Kidman. Mas agora penso em ti e te vejo com a cabeça de vaca. Imagino que estás fumando com a cara de vaca e jogando fumaça pelo nariz da vaca. MUUU. Vai-te, vai-te. MUUU.]

Solução original, não é, caro leitor?

Passo agora para a Saudade. É uma das passagens que acredito ser das mais belas do livro, ainda que mantenha um pouco da jocosidade dessa aí encima. A palavra correta não é “bela”... é “terna” (de ternura). Esta se encontra na oitava Carta (segundo a contagem que eu mesmo inventei):

Hace ya 5 meses que no te veo. Ahora lo único que hago es bajar al puerto a ver si veo el barco en el horizonte. Nunca veo tu barco. Llegan los otros. Sin piernas, sin brazos, sin orejas, sin lengua, sin ojos, sin nariz. Yo espero que quando vengas, traigas tus piernas, tus brazos, tu lengua, tu nariz. Pero si tienes que elegir, trae tus orejas, tus piernas, tus ojos, si quieres deja tu lengua y tus piernas, pero sobre todo tus piernas para que no te vayas de nuevo.

[Faz já 5 meses que não te vejo. Agora o único que eu faço é descer até o porto para ver se vejo o barco no horizonte. Nunca vejo o teu barco. Chegam os outros. Sem pernas, sem braços, sem orelhas, sem língua, sem olhos, sem nariz. Eu espero que quando venhas, tragas as tuas pernas, teus braços, tua língua, teu nariz. Mas se tiveres que escolher, traz as tua orelhas, tuas pernas, teus olhos; se quiseres, deixa a tua língua e as tuas pernas, mas acima de tudo as tuas pernas, para que não vás embora de novo.]

Agora, passo para a Esperança. Esse sentimento é plasmado numa imagem dinâmica e estática ao mesmo tempo (creio que extática faz a síntese...): dois trens que se cruzam. Suscita o tempo no qual um afeto infinito pode ser trocado entre dois seres, estremecê-los por completo. Esperança, muita, é também o que se há de encontrar no arremate da carta, como verás, ó leitor! É a sexta carta e está em português:

Esta carta pode ser como olhares trocados a partir de dois trens na mesma estação.

Seguindo direções opostas.

Esta carta pode ser uma aposta de que os trens vão voltar ainda várias vezes.

Esta carta pode apostar que os dois, um em cada trem, ainda serão os mesmos de antes.

(...)

Em cada e toda letra, está esta carta.

Em toda palavra, afinal, espreita uma carta de amor.

Quem nunca procurou a Esperança no mais estúpido bilhete, na mais corriqueira mensagem de celular, no mais formal dos emails... nunca amou! Não é verdade, leitor?

Por último, a Desesperação. A imagem mais impactante, sem dúvida. Eu nunca tinha lido uma expressão tão exata para o sentimento a que se refere esta passagem. Admito não ser nada próximo dum leitor de poesia que mereça essa denominação. Mas atrevo-me a intuir a priori que nunca se cunhou expressão como essa! Está na quarta Carta:

Ahora pienso en ti. Pero no estás aqui. Las horas pasan. Las horas me pasan como hormigas en la cara, mientras pienso en ti.

[Agora penso em ti. Mas não estás aqui. As horas passam. As horas me passam, como formigas na cara, enquanto penso em ti.]

Céus, leitor! Formigas na cara! Certamente, algumas delas mordem! Alguém poderia me dizer que essa passagem deveria ser considerada expressão da Saudade, não da Desesperação. Mas eu discordaria. Uma coisa é ter saudade, querer alguém de volta. Outra é sentir o tempo da separação deste modo, a passar pela face como formigas; expressá-lo numa imagem que chega a ser paralela à da própria morte: ter a boca cheia de formigas. Talvez morrer de saudade seja isso: perder a luta contra o tempo de uma espera ou de uma separação, deixá-lo invadir-nos por completo, enfiar-se na boca, nos ouvidos, nos olhos... como formigas. O tempo me passa como formigas na cara: a Saudade passa a ser Desesperação, está-se prestes a morrer dela.

Por hoje é só, leitor. Li na ficha técnica do livrinho que a tiragem da edição é de apenas cem exemplares. Sinto-me possuidor de um tesouro por ser um dos cem afortunados a possuir um exemplar. Mas se o livro te interessou, encorajo-te a mandar-me um email. Eu escanerizo o livro, faço cópia do DVD, o que for preciso! De todos modos, vão os dados bibliográficos:

RETTORE, Paola. Pequenas navegações: cartas de amor. Ilustrado por Paula Rettore e Marcelo Kraiser. Belo Horizonte: Ed. do Autor, 2008. 60p. + DVD: il. ISBN: 978-85-908778-0-6

Até a próxima!

Rico.

Em tempo (09/02/2009):
Leitor!
Um dos co-autores do livro fez-me a mercê de comentar esta minha resenha! Indicou-me o blog onde se desenvolvem os trabalhos relacionados ao livro! Para que o endereço deste não fique escondido nos comentários à resenha, divulgo-o aqui:

http://pequenasnavegacoes.blogspot.com/

Saudações!

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

O cãozinho de Schopenhauer


"Ó meu cãozinho barbado,
Tão peludo e tão velhinho!
Ao ver-Te triste e calado,
Pareces meu avozinho!..."

(Ernani Rosas)


Quem diria, ó leitor! Eis que voltei, antes ainda do ano acabar! Não poderia, –ó, não!-- terminar este ano de forma tão taciturna, postando-lhe o texto da última semana, tão desprovisto de esperança e mui melancólico.

Hoje, vamos de filosofia. Claro, peço-lhe que tenha piedade deste pobre sujeitinho que lhe escreve e não exija um tratado ou a última grande tese filosófica! Trago-lhe, sim, melhor dizendo, uma curiosidade filosófica. Evidentemente, representa uma curiosidade, antes, para mim, pois você, já o sei, há de conhecer o assunto de que trato. Meu intuito é, humildemente, lembrar-lhe da questão; quem sabe, estimulá-lo a catar na sua prateleira novamente as páginas de que lhe hei de falar.

Vamos, pois, dar um curtíssimo sobrevôo sobre os animaizinhos de Schopenhauer. Você haverá de ter notado certa predileção da minha parte por este filósofo. E esta existe, de fato. É que, na minha infinita ingenuidade, eu acredito e dou fé ao que ele expõe na sua ética, a Ética da Compaixão. Sim! Creio que se déssemos vazão à nossa compaixão –que, diz Schopenhauer, é um fenômeno universal–, teríamos um mundo melhor.

O leitor há de se lembrar do que há de mais conhecido acerca da doutrina de Schopenhauer: a essência de tudo o que há é Vontade, infinita, cega. E esta Vontade tem “graus de determinação”. Na medida em que esses graus tornam-se mais complexos, formas mais refinadas vão emergindo, das forças elementares da natureza aos seus seres mais acabados, estando no topo, o ser humano. Eis que, a partir de um dado ponto de complexificação, os seres começam a ter uma representação das coisas, passam a ter um mundo, a diferenciar o eu do não-eu, a individuar-se; passam, pois, a estabelecer suas relações com os fenômenos. Por isso, a frase tão conhecida, que dá título à principal obra do filósofo: O mundo como vontade e como representação. Não é que haja dois mundos, são apenas duas faces da mesma moeda: a essência do mundo é vontade, mas o que dele aparece para os indivíduos é representação, ou seja fenômeno, aquilo que se mostra. Como assim? Ora, como eu disse antes, tudo o que há é vontade, a mesma vontade, infinita e cega. Porém, a partir de determinado “grau de determinação” emergem seres que são capazes de intuir a diferença que há entre ele e as demais coisas que o rodeiam. Uma pedra não é capaz disso, mas, por exemplo, uma ameba o é: ela intui perfeitamente que há um outro próximo dela, que não é ela mesma, e que pode esticar os seus pseudópodes e englobá-lo para alimentar-se. A ameba já possui um mundo, por pobre que seja: está ela e o que ela pode englobar. Não é grande coisa, mas já é um mundo, já é representação, ela já lida com fenômenos. Mas! Mas! Mas! Ela, a ameba, como tudo o que há, é, na sua essência, vontade: a pedra, ela e o ser humano são, nada mais, nada menos, vontade. E o mundo, como aparece para a ameba, como aparece para o ser humano, com tudo delimitado (o eu, o outro, o espaço, o tempo etc.), é apenas fenômeno, ILUSÃO! Pois, somos todos, no âmago, na essência, vontade, a mesma vontade.

Pois bem! Sei que a minha exposição da doutrina foi demasiado curta e grosseira! Mas não posso ir muito longe nela, caríssimo leitor, porque, além de lhe estar fazendo uma repetiçãm de lhe estar fazendo uma repetiçe grosseira! Mas ndo delimitado (o eu, o outro, o espaço, o tempo etc) sno. Eis que, a partiro por demais enfadonha, tomar-me-ia muitíssimo tempo --bruto que sou!-- fazer uma descrição mais detalhada. De todos os modos, com o dito, basta para seguirmos! Na essência, tudo o que há é vontade, e a partir de certo "grau de determinação", os seres formados são capazes de intuir um eu do que é não-eu, ou seja, de ter uma individualidade. E eis que, se no topo dos "graus de determinação" está o ser humano, não muito antes estão outros animais, como, por exemplo, o macaco, o elefante e o cão. O que os distingue, segundo a diferenciação clássica que é adotada por Schopenhauer, é que o homem possui razão. E, pela razão, ele é capaz de, digamos, dispor do tempo: além de viver no presente, ele é capaz de "viver" o passado e contar com o futuro; em suma, ele possui uma consciência de si mais refinada. Mas, se isso parece uma grande vantagem, ainda não devemos cantar vitória! Lembre-se, leitor, que Schopenhauer ficou conhecido pelo seu pessimismo! O homem é o mais consciente dos animais, mas, por isso mesmo, é o que mais sofre; pois, como os animais, pode sofrer no presente --quando é agredido, quando tem fome etc.--, mas sofre também pelo passado e pelo futuro! Pela lembrança de uma humilhação, de um ente perdido, ou pelo castigo que haverá de sofrer por um ato recente, pelo diagnóstico de câncer que recebeu agora mesmo... O ser humano é, pois, o animal mais capaz de sofrimento! Ainda assim, não é o único que sofre: os animais supracitados também sofrem e compartilham conosco, pelo menos, um pouco da nossa capacidade de sofrimento. E é o esquecimento dessa nossa comunhão com os animais algo que causa profunda repulsa no nosso filósofo. Sim, leitor! Schopenhauer foi um grande amigo dos animais! E a sua doutrina, quando vertida em clave moral na sua dissertação Sobre o fundamento da Moral, reserva algumas linhas à defesa das inocentes criaturas que alguns seres humanos --muitos, na verdade...- fazem sofrer desnecessariamente. Devo confessar que um dia li algo desta defesa também n'O mundo como vontade e como representação, mas que --maldición!-- não consegui encontrar enquanto elaborava as presentes linhas. Conformo-me com a minha inépcia, e trato de mostrar-lhe a defesa com o que encontrei na mencionada dissertação.

Qual é, digamos, o ponto principal da defesa de Schopenhauer neste caso? Bem, ele deriva do centro da sua doutrina: a essência de tudo é vontade, e a aparente individualidade dos seres é uma ilusão: na sua representação, o cão que um malvado chuta é algo outro, o não-eu do agressor. Porém, do ponto de vista do mundo como vontade, o que temos é a mesma vontade negando a si mesma, vontade agindo sobre vontade. O agressor acredita que o sofrimento do cão nada tem a ver com ele, mas não sabe que ele e o cão são, na essência, a mesma vontade, e o sofrimento é de ambos. Agora, se o agressor, de repente, ouvindo os ganidos do pobre cãozinho, sentir um profundo arrependimento; se, diante da figurinha retraída e peluda sentir-se muito mal e, logo em seguida, a ela se dirigir e lhe fazer afagos --e até pedir desculpas--; se isso acontecer é porque tomou lugar aquilo a que Schopenhauer chamou de compaixão: a ilusão da representação é suspensa e o agressor se dá conta da sua comunhão com o agredido no sofrimento, dá-se conta de que o sofrimento do agredido é, no fim, sofrimento do agressor.

Ora, quem é incapaz de uma experiência assim, está incapacitado para a motivação moral por excelência e é, realmente, uma pessoa manca, kakethica, digna de comiseração. Também, de certo modo, digna de repulsa, como o são, aos olhos de Schopenhauer, aqueles que torturam e matam os animais sem a mais mínima distinção. Vamos, ó leitor, às palavras de Schopenhauer sobre o assunto!

"A compaixão para com os animais liga-se tão estreitamente com a bondade do caráter que se pode afirmar, confiantemente, que quem é cruel com os animais não pode ser uma boa pessoa. Também está compaixão mostra-se como tendo surgido da mesma fonte, junto com aquela virtude que se exerce em relação aos seres humanos. Assim, por exemplo, as pessoas sensíveis sentirão o mesmo remorso, o mesmo descontentamento consigo mesmas, ao ter a lembrança de que, num acesso de mau humor, esquentadas pela ira ou pelo vinho, maltrataram imerecida, desnecessária ou excessivamente seu cão, seu cavalo ou seu macaco, o que é sentido do mesmo modo que a lembrança da injustiça exercida para com os seres humanos, que se chama a voz da consciência punitiva. Lembro-me de ter lido que um inglês que numa caçada na Índia matara a tiros um macaco não pode esquecer o olhar que o animal lançou-lhe ao morrer e, desde então, nunca mais atirou em macacos."

Veja, leitor, a tese seguida do caso! Compaixão para com os animais e bom caráter andam juntos! E até o caçador é tomado de compaixão ao ver o sofrimento causado pelo seu ato! Agora, umas palavras de censura às línguas que insistem em afastar animais e humanos pelo uso de termos diferentes para os mesmos atos:

"(...) encontramos nos caminhos populares a peculiaridade de muitas línguas, especialmente a alemã, que têm palavras próprias para o comer, o beber, o engravidar, o parir, o morrer e para o cadáver dos animais, para não ter de usar as palavras que indicam aqueles atos feitos pelos seres humanos e para esconder, sob a diversidade das palavras, a completa identidade das coisas. O fato de que as línguas antigas não conheçam tal duplicidade das expressões, mas que, despreocupadamente, indiquem a mesma coisa com as mesmas palavras, mostra que aquele artifício lamentável é, sem dúvida, obra da fradaria européia, que, na sua profanação, não acreditava poder chegar suficientemente longe no negar e caluniar a essência eterna que habita todo animal."

Mais ainda, agora com uma pitada sobre o que expusemos sobre a doutrina do autor, somada a um certo impulso anti-judáico-ocidental (dirigido a um certo fisiologista chamado Rudolph Wagner):

"o essencial e o principal é o mesmo no animal e no homem, e aquilo que nos distingue não está no primário, no princípio, no arcaico, no ser íntimo, no âmago de ambos os fenômenos, que, como tal, tanto num como noutro, é a vontade do indivíduo, mas somente no secundário, no intelecto, no grau da força do conhecimento, que no homem, através da faculdade acrescentada de conhecimento abstrato, chamada razão, é incomparavelmente mais alto (...). Em contrapartida, o que é similar entre o animal e o homem é tanto psíquico como somático, deixando de lado mais comparações. A um tal desprezador de animais judaizado e ocidentalizado tem-se de trazer à memória o fato de que, do mesmo modo que ele foi amamentado por sua mãe, também o animal o foi pela dele."

E por último, a passagem de que mais gosto, pela ternura da imagem e porque me lembra um certo cãozinho que você mesmo, leitor, há de conhecer. O tom da expressão de Schopenhauer é de consternação, mas a idéia é muito bonita, ainda que também antiga, mas não perde o seu valor, que é eterno, pois se trata da fidelidade canina:

"Os antigos egípcios, cuja vida toda era consagrada a fins religiosos, punham nas mesmas sepulturas as múmias dos homens e a dos íbis, crocodilos etc.; mas, na Europa, é um horror e um crime o fato de um cão fiel ser enterrado junto do lugar de descanso do seu dono, onde ele, por vezes, esperou a sua própria morte por causa de uma fidelidade e de um apego que não são encontrados no gênero humano."

Que bonito, esse cãozinho que fica ali, sentadinho junto ao lugar do repouso derradeiro do seu dono! Não lembra o nosso queridíssimo Quincas Borba, o eterno cãozinho machadiano?! E, ora, quem diria? Nosso filósofo tão amoroso para com os animaizinhos!

Por ora é só, caríssimo leitor! Agora sim, despeço-me por este ano. Deixei-lhe, lá encima, um desenho --rabisco, melhor dizendo...--, que fiz enquanto matutava estas linhas e pensava no cãozinho de Schopenhauer.



Aufwiedersehen!

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Zonagônia, sua melodia

Ó leitor! Em que momento nos juntamos novamente! Há tempos que não nos encontramos, e verás que não venho em boa hora... Pode ser que depois d’hoje não queiras mais passar os olhos pelo que escrevo. Mas eis que insisto em cá pôr as linhas que seguirão, porque é o desejo que me move, de emanar os tormentos e lamúrios! Peço-lhe o perdão já de saída.

Eis que hoje vamos de... não sei bem o que é! Mas trata-se de algo como uma reflexão sobre a vida, sobre o andar dos dias, o passar do tempo e das coisas a que alguém é obrigado a aventar-se, por instinto ou por hábito adquirido das passadas gerações... ou realmente –segundo acredito– pelo desejo consciente de vivê-las, arriscar-se, esperançoso de bom sucesso!

Mas não é só dos meus miolos que retirarei o material que há de nos amparar na reflexão para a qual o convido, ó leitor! Pois encontrei a expressão perfeita do que eu queria dizer –coisa pasmante!– nas bocas de dois personagens de Rubem Fonseca, o grandioso mestre da prosa ultra-violenta contemporânea. Irei, leitor, encadear os dois arrazoados ao sabor da necessidade expressiva daquilo que hei de dizer hoje. Sem contar, por discrição, o que me leva a fazer a ligação entre esses dois textículos, limito-me ao essencial.

Eis que há vezes em que acreditamos estar indo bem, levantamos e dormimos acompanhados da felicidade e do sossego, e vivemos com o olho no além adiante, planejando, desenhando paisagens, sentindo o cheiro dos ventos e os sabores do futuro, sempre certos de seguir acompanhados do bom e do bem presentes. Mas, ó leitor, isso acaba no tempo em que resplandece um raio! Não sabíamos, mas algo acontecia! E, com o trovão, sabemos que aconteceu. Tudo o que tínhamos a nos acompanhar, no sereno-viver de que falava, esfuma-se no silenciar do estrondo... Diante da paisagem deserta, fica-nos a ressoar um agudíssimo, dentro do crânio; daí em diante, nos acompanha, onde quer que formos, quando dormimos e quando acordamos, na rua, no trabalho, no banheiro, mesmo lá no fundo do frigir da nossa omelete dominical. Damo-nos conta de que não é do ouvido lesado. Descobrimos que há uma corda muito fina, que parte daquela região perto do esôfago, onde sentimos tudo o que é ruim, pavoroso e causador de agonia –chamo-a de zonagônia–, passa pela espinha dorsal e chega ao cérebro. O som é, na verdade, essa corda vibrando, num agudo que nem um Paganini poderia alcançar no seu violino. E, como eu disse, fica ressoando, dia após dia, onde quer que nos encontremos ou seja lá o que estivermos fazendo. Deixemos que um dos personagens de Fonseca descreva como é ter esse agudíssimo vibrando ao infinito:

acordo sentindo uma aporrinhação enorme e penso depois de tomar banho passa, depois de tomar café passa, depois de fazer ginástica passa, depois do dia passar passa, mas não passa e chega a noite e eu estou na mesma, sem querer mulher ou cinema, e no dia seguinte também não acabou. Já fiquei uma semana assim, deixei crescer a barba e olhava as pessoas não como se olha um automóvel, mas perguntando, quem é?, quem é?, quem-é-além-do-nome?, e as pessoas passando na minha frente, gente pra burro nesse mundo, quem é?

Mas eis, leitor, que não é só isso! Pois queremos tanto silenciar o vibrar da cordinha, mas não cessa. Ah, não cessa! Cordinha tensa, repuxa a zonagônia! E os dias passam, trabalho-casa-coisas-casa-trabalho, e o agudíssimo lá, (“quem é? o que?”). Um dia, mais duro que os demais, de repente, algo quebra: como os vidros que não podem com a voz de uma super-soprano –coisa que só vi em filme, aliás–. Outro personagem de Fonseca tem as melhores palavras para isso:

aconteceu uma coisa que nunca pensei que acontecesse comigo. Eu estava sozinho. Em determinado momento fiquei pensando em Norma com tal intensidade que comecei a ficar sem ar, com a sensação de que o meu coração ia parar, o que devem sentir as pessoas prestes a morrer. Então subitamente comecei a chorar. Havia uns trinta anos que eu não chorava; é uma coisa estranha que preciso contra em detalhes. Após algum tempo os olhos se fecham; você sente as lágrimas molhando o seu rosto e uma sensação de alívio como se você fosse um homem envenenado e uma veia se abrisse e lentamente pusesse para fora todo o sangue ruim, fazendo-o sentir-se melhor a cada gota que saísse –mais leve, mais bom, mais puro, mais digno, mais feliz na sua automisericórdia. Depois disso (se você está sozinho) você sente vontade de gemer um pouco e suspirar fundo e fazer umas caretas de dor, contrair o rosto fechando os olhos com força, como se estivesse em frente a um espelho ou a uma câmera cinematográfica. É um abandonar-se à dor que faz a dor doer menos. A dor a seco é pior.

O volume do agudo abaixa, ah sim abaixa! É todo um remédio, como diz o personagem, espécie de sangria.

Tenha presente, ó leitor!, que não é necessário que você me acompanhe no dito aqui! Quando falei em “nós”, foi, assim, de modo genérico, como quando os anglo-saxões dizem “one can do this, or do that”; “um”, dizem eles, um qualquer. E, perdoe-me o leitor, mas é mais a esse “qualquer” que proponho esses pensamentos de hoje do que a você, que tenho em tão alto conceito, e jamais chamaria de “qualquer”! Antes, o “qualquer” sou eu!, e ouso, vez por vez, pedir-lhe a sua atenção.

Mau modo de terminar os escritos deste ano, eu sei! Mas eis que o agudíssimo, melodia da zonagônia, sobrepôs-se a tudo o mais, e não pude trazer-lhe nada melhor desta vez, caríssimo leitor. Mas passa (depois do ano novo, da volta ao trabalho, do carnaval, da páscoa, passa...). Prometo estar recomposto no próximo ano. Estarei cá, esperando-o. Grato sou, e muito, pela sua paciência e boníssima vontade no ano presente. Passe bem!

Vale!

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

A primeira lei anti-poluição


Cá estou de novo, caríssimo leitor! Sumi, é verdade. Mas vivo que estou, apareço, ei-me! E como já se disse do “burrinho predrês”, quem é visto é lembrado!

E hoje, leitor, vamos de curiosidade. Não é lá tão notável, mas muito ao sabor dos nossos tempos, no qual ecologistas e céticos estão a se digladiar: os primeiros acusando os segundos de cegos, e estes dizendo daqueles que são alarmistas e histéricos. Não estou aqui para dar o veredicto sobre esse certame – pois quem sou eu para tal, ó leitor?! –, mas sim para trazer à memória (ou ao conhecimento) dos interessados e curiosos aquele que pode ser um dos primeiros tiros deste encarniçado debate que vemos nos dias atuais.

Já num textículo que neste blogue figura, indiquei certa admiração que nutro pela Idade Média. E eis, leitor, que a ela novamente me permito remetê-lo. Se naquele escrito tive por fonte uma obra de Jacques LeGoff, nas linhas que seguem hei de referir-me a uma obra que vou beliscando de longe em longe, sempre com gosto, como quem deixa pedacinhos de chocolate a derreter na boca (ao invés de morder a barra qual tubarão). O autor é Jean Gimpel, a obra intitula-se A revolução industrial da Idade Média. Tendo chegado exatamente ao meio deste volume, já me inteirei de coisas fantásticas, maravilhantes e admiráveis. Entre elas, que já na Idade Média havia uma espécie de capitalismo: as pessoas se associavam para construir moinhos nos rios, e vendiam suas “partes” dos moinhos. Tais partes eram como verdadeiras “ações”, que eram revendidas pelos compradores a preços que variavam segundo a produtividade dos moinhos. Imagine, ó leitor!: Você investe X na construção de um moinho, junto a outras 99 pessoas, cada qual investindo X. Uma vez pronto, o moinho vale, digamos, 100X. Em funcionamento, o moinho mói 1 tonelada de trigo por ano. Ele é um sucesso, cada investidor recebe 5X por ano: o X investido e mais 4X como parte do que lhe toca daquilo que as pessoas pagam para usar o moinho. Um dia, você decide vender a sua parte, por 10X. O comprador tem a expectativa de recuperar o investimento em dois anos e então começar a lucrar. Mas eis –ó maravilha!–, que o rio se torna mais caudaloso, e agora o moinho mói 4 toneladas de trigo por ano! O felizardo comprador recupera o investimento (10X) em meio ano e lucra mais 10X no fim desse ano. Mas a sua filha vai casar-se, precisa de um dote... e ele vende a sua “parte” do moinho por 40X. O novo comprador espera recuperar o investimento em dois anos, e começar a lucrar 20X por ano. Mas –ó desgraça!– o rio começa a minguar... e passa a moer ½ tonelada de trigo por ano... Prejuízo! E o último comprador está duplamente quebrado: perdeu uma dinheirama e vai ser moído pelo rolo de massa da esposa...

Não sei bem se fiz corretamente os cálculos acima, caro leitor. Você, no entanto –perspicaz–, deve ter notado já antes dos meus rodeios todo o potencial “especulativo” que se criava ao redor dessas “partes” dos moinhos, as altas e baixas a que estavam sujeitas por muitíssimos motivos: aumento ou míngua do rio, moinhos concorrentes, colheita do trigo etc. Verdadeiras “ações”, numa verdadeira Wall Street nos rios da Europa Medieval...

Mas, céus!, como me desviei do meu primeiro intento aqui! Recapitulemos: falava eu das curiosidades que tinha encontrado percorrendo o livro de Jean Gimpel até a metade. Uma delas, essa dos moinhos. Outra: os chineses, supostamente, inventaram o relógio mecânico no século XI, os europeus só no XIV. E mais outra, que é o verdadeiro assunto destas claudicantes linhas: ao que parece, a primeira lei anti-poluição que o Ocidente editou foi criada em 1388 na Inglaterra, votada em Cambridge pelo parlamento. E como se chegou a precisar de uma lei dessas? O itinerário não difere muito do que conhecemos ainda hoje em dia. Em primeiro lugar, houve um desmatamento atroz. Gimpel apresenta alguns relatos de como este se deu na França e na Inglaterra. Florestas inteiras foram total ou parcialmente destruídas, para a construção de castelos, casas, para alimentar fornos de forjas; este e ainda muitos outros usos tinha a madeira das castigadas florestas. Um exemplo: o castelo de Windsor, para ser construído, necessitou da destruição de uma floresta inteira, ou seja, 3.004 robles! For Christ’s sake! Sim, leitor, acredito que para você –como o é para mim– deve ser difícil imaginar o que seriam todas essas árvores; mas trate de pensar, como eu, que se cada árvore dessas ocupasse dois metros quadrados (pois eram árvores das grossas), teríamos aí algo como 9000 metros quadrados de floresta eliminados! Pois bem, tal era a situação: as autoridades notaram que as coisas não poderiam continuar desse modo, pois viam todos os dias os bosques sumindo sob os seus olhos. Proibiu-se o corte indiscriminado de árvores e, com isso, uma nova fonte de calor para os fornos e tudo o mais passou a ser necessária. Eis que se partiu para o uso de um tipo de carvão conhecido como hulha ou carvão de mar.

Em algumas décadas, o ar começou a se deteriorar... Londres, segundo Gimpel, foi a primeira cidade a sofrer com a poluição atmosférica; a pestilência da queima de carvão se espalhava, a fumaça e o seu cheiro passou a irritar olhos e vias respiratórias dos cidadãos. Até para cozinhar usava-se a hulha, mas, claro, nas cozinhas do povo: a nobreza afastava-se o quanto podia do contato com o carvão.

Estava o ar, pois, leitor, empestado, as florestas, devastadas. Falta algo? Ó, sim! Uma grandíssima parte da queima de carvão se destinava aos fornos das forjas e estas eram muitíssimas nas cidades. E como é que se forja o ferro, ó digníssimo Sir Reader!? Incandescendo-o e... martelando! Da manhã à noite, os martelos desciam forte sobre os rubros ferros, o som infernal castigava os tímpanos de todos! Gimpel chega a citar um interessante poema francês da época, cujos primeiros versos dizem assim:

Ferreiro negro de fuligem,

todo sujo de poeira,

deixa-me louco o barulho

dos seus golpes redobrados.

Estava tudo péssimo, ó leitor, mas resta ainda um cálice de calamidade para verter-se sobre o homem medieval: a água dos rios mudava-se em sangue... Não ao modo bíblico, é claro! É que os matadouros lançavam seus restos aos rios, assim como os deixavam ao ar livre, empestando ainda mais o ar. E veja você as contas francesas de 1293 apresentadas por Gimpel, referentes ao abate de animais: 188522 carneiros, 30116 bois, 19604 vitelos e 30784 porcos. Os restos de toda essa carnificina sendo aventados ao rio Sena... Bela coisa, na é mesmo?

Temos aí, leitor, os traços mais marcantes da Herkunft, da procedência da sobredita primeira lei anti-poluição. No fim do século XIV, o parlamento inglês votou e sancionou, visando à pureza do ar e da água, a lei: proibia-se o aventar detritos aos rios e o abandono de imundícies ao ar livre. E, como cita Gimpel, esta advertia ainda para as conseqüências ambientais do seu possível desrespeito: “o ar será seriamente corrompido e envenenado, doenças inumeráveis e epidemias intoleráveis grassarão todos os dias”. A modo de profecia, bem ao gosto de um país cristão, a lei prometia calamidades estrepitosas pela sua quebra.

Vê-se mais uma vez como é injusto o trevoso epíteto da Idade Média. O primeiro ditame de “consciência ecológica” expressada juridicamente vem deste tão vilipendiado período da história ocidental.

Deixo-o por ora, ó leitor, com essa sugestão de leitura, essa obra de Gimpel, tão informativa e estimulante da imaginação.

Vou-me satisfeito por, quem sabe, havê-lo entretido com mais algumas linhas, escritas com esmero e a esperança de obter a mui alta distinção de tê-las percorridas pela sua atenção.

Saudações e até a próxima!

Rico.