sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Das tripas coração

Três semanas. Incríveis três semanas. A sua pele já se esverdeava, as olheiras eram cavernosas. Impossível dormir, pensar, trabalhar. Já eram três dias sem bocado também, não havia espaço. Sentia náusea de pensar nisso. O médico não sabia o que fazer: era um paciente difícil, só queria remédios e se negava a aceitar qualquer intervenção além disso; “me recuso”, dizia ao óculos do doutor.

Em seu apartamento bem decorado, aos seus 52 anos, estava sentado na cama, pensando como poderia estar naquela situação. Tomou tudo o que lhe foi receitado e, mesmo com dificuldade, aceitou seguir algumas receitas que leu na tela do computador. Nada funcionou. Três semanas. Hoje é exatamente o vigésimo primeiro dia. Assim como pesquisou por receitas, poderia procurar se era um recorde ou algo assim, mas não lhe passou pela cabeça. Só a ideia fixa, que descia pelo peito e chegava no abdome, baixo-ventre, e enrijecia. A dor e a imobilidade, todas ali, naquela espessura, no concreto que havia parado o giro alegre de sua outrora denominada “betoneira”.

Os fracassos oficiais e alternativos fizeram-no cético. Desistiu de tudo e resolveu, verdadeiramente, deitar e morrer daquilo. Das mortes, talvez uma das mais infaustas: iria morrer de constipação intestinal. Deitou-se na cama, sentindo as agulhadas e o peso de seu interior. Quando encontrou a posição mais cômoda, largou-se a lembrar da vida. “Vou morrer disso, quero pelo menos aquele replay dos que vão embora”. Obviamente, não estava ainda morrendo, mas buscou tudo o que podia. Frustrado, só lembrava, contra a própria vontade, das manhãs de jornal sentado à privada. Do conto que certa vez o estagiário degenerado do escritório lhe havia passado, que terminava com um casal lendo o futuro em suas próprias fezes. De um filme que abandonou sem terminar quando aquela bichinha drogada mergulhou na privada. “Eu mergulharia de felicidade agora”, disse.

Foi então que as trevas de seu ceticismo se alumiaram e ele enxergou a luz: nos tempos de estudante, havia que ir à biblioteca, e lá, inexoravelmente, bastava parar diante das compridas estantes e passar os olhos sobre as lombadas, que logo vinha uma profunda necessidade, um chamado vindo de seu âmago biológico, pré-humano... de ir ao banheiro. Ao lembrar-se disso, quase que sentiu algo se movendo dentro de si. Superando as dores, levantou-se, calçou as sandálias e saiu de seu apartamento. Desceu as escadas evitando impactos fortes, alcançou a garagem, subiu em seu carro, começando a travessia em direção do outro lado da cidade, aonde estava o campus universitário.

“Qual era a prateleira? Será que mudou tudo de lugar?”, eram as suas dúvidas, percorrendo as avenidas, passando os semáforos, reconhecendo seu eu daquele então, aqui e acolá em pontos de ônibus esparsos, nas costas arqueadas sob mochilas.

Não foi fácil estacionar seu sedã enorme, como deve ter sido para quem ia ao campus de carro há duas décadas atrás. Ao descer do veículo, suado, notou que dois rapazes riam e pareciam estar fotografando a traseira. Dirigiu-se à entrada da biblioteca. Agora havia uma catraca eletrônica. Teve que passar por ela como visitante, “eu, que tantas vezes passei aqui, sem catracas!”. A rampa ainda era a mesma: quinze passos e virada em 180 graus, mais quinze e outra virada. “Prateleiras são fáceis de mudar, mas não encanamentos”, pensou, e foi andando em direção de onde se recordava procurar os seus livros. Sem se surpreender, notou que a prateleira correspondente aos assuntos de então não havia mudado de lugar. Era apenas mais comprida e mais alta. Por um momento, esqueceu-se do que havia ido fazer, e passou a perguntar-se o que leriam os estudantes de agora quando fossem pesquisar os temas que ele mesmo necessitou pesquisar. Foi olhando lombadas, andando aos poucos, até ser absorvido pelas etiquetas numeradas. “Eu ainda sei o tema a que cada conjunto desses números se refere...”. Já alcançava o fim da prateleira, puxando pelo topo da lombada um ou outro livro para lhe ver a capa, quando notou que seu caminhar era meio abaixado, cruzando as pernas ligeiramente: estava se segurando, mesmo.

Foi apressado ao banheiro que logo ali estava e entrou na primeira cabine que viu aberta. Fechou a porta, abaixou as vestes (“nem papel coloquei em cima do assento!”) e posicionou-se sobre a privada. Esperava sem qualquer temor de ser decepcionado: a sensação de que algo iria acontecer era nítida. Com satisfação, certo de que havia resolvido seu problema, começou a olhar ao redor os dizeres, os desenhos. Taludinho safo 99918407, dizia aqui; Quero chupar, dizia ali. Legaliza de uma vez - a sua mãe!, dizia lá, como em um diálogo de duas caligrafias. O box era um verdadeiro palimpsesto. Uma inscrição lhe absorveu totalmente a atenção. Não era feita a caneta: havia-se feito com a ponta de um compasso, com um estilete ou canivete, na única parte do box que não era de madeira, a parede direita. Distinguia o sulco de um nome incompleto, que foi absorvendo as camadas de tinta rala, passada ano após ano sobre o cimento liso. As lágrimas começaram-lhe a correr pelo rosto, os soluços iam, ritmados, preenchendo o espaço do banheiro. Lembrou-se. A biblioteca para fugir. As lombadas, para perder-se. A parede, para tentar esquecer.


A dor no ventre ia-se embora, agora, ao ritmo lento de seu esvaziar-se.

Nenhum comentário: