Três
semanas. Incríveis três semanas. A sua pele já se esverdeava, as
olheiras eram cavernosas. Impossível dormir, pensar, trabalhar. Já
eram três dias sem bocado também, não havia espaço. Sentia náusea
de pensar nisso. O médico não sabia o que fazer: era um paciente
difícil, só queria remédios e se negava a aceitar qualquer
intervenção além disso; “me recuso”, dizia ao óculos do
doutor.
Em seu
apartamento bem decorado, aos seus 52 anos, estava sentado na
cama, pensando como poderia estar naquela situação. Tomou tudo o
que lhe foi receitado e, mesmo com dificuldade, aceitou seguir
algumas receitas que leu na tela do computador. Nada funcionou. Três
semanas. Hoje é exatamente o vigésimo primeiro dia. Assim como pesquisou
por receitas, poderia procurar se era um recorde ou algo assim, mas
não lhe passou pela cabeça. Só a ideia fixa, que descia pelo peito
e chegava no abdome, baixo-ventre, e enrijecia. A dor e a
imobilidade, todas ali, naquela espessura, no concreto que havia
parado o giro alegre de sua outrora denominada “betoneira”.
Os
fracassos oficiais e alternativos fizeram-no cético. Desistiu de
tudo e resolveu, verdadeiramente, deitar e morrer daquilo. Das
mortes, talvez uma das mais infaustas: iria morrer de constipação
intestinal. Deitou-se na cama, sentindo as agulhadas e o peso de seu
interior. Quando encontrou a posição mais cômoda, largou-se a
lembrar da vida. “Vou morrer disso, quero pelo menos aquele replay
dos que vão embora”. Obviamente, não estava ainda morrendo, mas
buscou tudo o que podia. Frustrado, só lembrava,
contra a própria vontade, das manhãs de jornal sentado à privada.
Do conto que certa vez o estagiário degenerado do escritório lhe
havia passado, que terminava com um casal lendo o futuro em suas
próprias fezes. De um filme que abandonou sem terminar quando aquela
bichinha drogada mergulhou na privada. “Eu mergulharia de
felicidade agora”, disse.
Foi
então que as trevas de seu ceticismo se alumiaram e ele enxergou a
luz: nos tempos de estudante, havia que ir à biblioteca, e lá,
inexoravelmente, bastava parar diante das compridas estantes e passar
os olhos sobre as lombadas, que logo vinha uma profunda necessidade,
um chamado vindo de seu âmago biológico, pré-humano...
de ir ao banheiro. Ao lembrar-se disso, quase que sentiu algo se
movendo dentro de si. Superando as dores, levantou-se, calçou as
sandálias e saiu de seu apartamento. Desceu as escadas evitando
impactos fortes, alcançou a garagem, subiu em seu carro, começando a
travessia em direção do outro lado da cidade, aonde estava o campus
universitário.
“Qual
era a prateleira? Será que mudou tudo de lugar?”, eram as suas
dúvidas, percorrendo as avenidas, passando os semáforos,
reconhecendo seu eu daquele então, aqui e acolá em pontos de ônibus
esparsos, nas costas arqueadas sob mochilas.
Não
foi fácil estacionar seu sedã enorme, como deve ter sido para quem
ia ao campus de carro há duas décadas atrás. Ao descer do veículo,
suado, notou que dois rapazes riam e pareciam estar fotografando a
traseira. Dirigiu-se à entrada da
biblioteca. Agora havia uma catraca eletrônica. Teve que passar por
ela como visitante, “eu, que tantas vezes passei aqui, sem
catracas!”. A rampa ainda era a mesma: quinze passos e virada em
180 graus, mais quinze e outra virada. “Prateleiras são fáceis de
mudar, mas não encanamentos”, pensou, e foi andando em direção
de onde se recordava procurar os seus livros. Sem se surpreender,
notou que a prateleira correspondente aos assuntos de então não
havia mudado de lugar. Era apenas mais comprida e mais alta. Por um
momento, esqueceu-se do que havia ido fazer, e passou a perguntar-se
o que leriam os estudantes de agora quando fossem pesquisar os temas
que ele mesmo necessitou pesquisar. Foi olhando lombadas, andando aos
poucos, até ser absorvido pelas etiquetas numeradas. “Eu ainda sei
o tema a que cada conjunto desses números se refere...”. Já
alcançava o fim da prateleira, puxando pelo topo da lombada um ou
outro livro para lhe ver a capa, quando notou que seu caminhar era
meio abaixado, cruzando as pernas ligeiramente: estava se segurando,
mesmo.
Foi
apressado ao banheiro que logo ali estava e entrou na primeira cabine
que viu aberta. Fechou a porta, abaixou as vestes (“nem papel
coloquei em cima do assento!”) e posicionou-se sobre a privada.
Esperava sem qualquer temor de ser decepcionado: a sensação de que algo iria
acontecer era nítida. Com satisfação, certo de que havia resolvido
seu problema, começou a olhar ao redor os dizeres, os desenhos.
Taludinho safo 99918407,
dizia aqui; Quero chupar,
dizia ali. Legaliza de uma vez
- a sua mãe!, dizia lá, como em um diálogo de duas caligrafias. O box era um
verdadeiro palimpsesto. Uma inscrição lhe absorveu totalmente a
atenção. Não era feita a caneta: havia-se feito com a ponta de um
compasso, com um estilete ou canivete, na única parte do box que não
era de madeira, a parede direita. Distinguia o sulco de um nome
incompleto, que foi absorvendo as camadas de tinta rala, passada ano
após ano sobre o cimento liso. As lágrimas começaram-lhe a correr
pelo rosto, os soluços iam, ritmados, preenchendo o espaço do
banheiro. Lembrou-se. A biblioteca para fugir. As lombadas, para
perder-se. A parede, para tentar esquecer.
A
dor no ventre ia-se embora, agora, ao ritmo lento de seu esvaziar-se.
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