sexta-feira, 28 de novembro de 2008

A primeira lei anti-poluição


Cá estou de novo, caríssimo leitor! Sumi, é verdade. Mas vivo que estou, apareço, ei-me! E como já se disse do “burrinho predrês”, quem é visto é lembrado!

E hoje, leitor, vamos de curiosidade. Não é lá tão notável, mas muito ao sabor dos nossos tempos, no qual ecologistas e céticos estão a se digladiar: os primeiros acusando os segundos de cegos, e estes dizendo daqueles que são alarmistas e histéricos. Não estou aqui para dar o veredicto sobre esse certame – pois quem sou eu para tal, ó leitor?! –, mas sim para trazer à memória (ou ao conhecimento) dos interessados e curiosos aquele que pode ser um dos primeiros tiros deste encarniçado debate que vemos nos dias atuais.

Já num textículo que neste blogue figura, indiquei certa admiração que nutro pela Idade Média. E eis, leitor, que a ela novamente me permito remetê-lo. Se naquele escrito tive por fonte uma obra de Jacques LeGoff, nas linhas que seguem hei de referir-me a uma obra que vou beliscando de longe em longe, sempre com gosto, como quem deixa pedacinhos de chocolate a derreter na boca (ao invés de morder a barra qual tubarão). O autor é Jean Gimpel, a obra intitula-se A revolução industrial da Idade Média. Tendo chegado exatamente ao meio deste volume, já me inteirei de coisas fantásticas, maravilhantes e admiráveis. Entre elas, que já na Idade Média havia uma espécie de capitalismo: as pessoas se associavam para construir moinhos nos rios, e vendiam suas “partes” dos moinhos. Tais partes eram como verdadeiras “ações”, que eram revendidas pelos compradores a preços que variavam segundo a produtividade dos moinhos. Imagine, ó leitor!: Você investe X na construção de um moinho, junto a outras 99 pessoas, cada qual investindo X. Uma vez pronto, o moinho vale, digamos, 100X. Em funcionamento, o moinho mói 1 tonelada de trigo por ano. Ele é um sucesso, cada investidor recebe 5X por ano: o X investido e mais 4X como parte do que lhe toca daquilo que as pessoas pagam para usar o moinho. Um dia, você decide vender a sua parte, por 10X. O comprador tem a expectativa de recuperar o investimento em dois anos e então começar a lucrar. Mas eis –ó maravilha!–, que o rio se torna mais caudaloso, e agora o moinho mói 4 toneladas de trigo por ano! O felizardo comprador recupera o investimento (10X) em meio ano e lucra mais 10X no fim desse ano. Mas a sua filha vai casar-se, precisa de um dote... e ele vende a sua “parte” do moinho por 40X. O novo comprador espera recuperar o investimento em dois anos, e começar a lucrar 20X por ano. Mas –ó desgraça!– o rio começa a minguar... e passa a moer ½ tonelada de trigo por ano... Prejuízo! E o último comprador está duplamente quebrado: perdeu uma dinheirama e vai ser moído pelo rolo de massa da esposa...

Não sei bem se fiz corretamente os cálculos acima, caro leitor. Você, no entanto –perspicaz–, deve ter notado já antes dos meus rodeios todo o potencial “especulativo” que se criava ao redor dessas “partes” dos moinhos, as altas e baixas a que estavam sujeitas por muitíssimos motivos: aumento ou míngua do rio, moinhos concorrentes, colheita do trigo etc. Verdadeiras “ações”, numa verdadeira Wall Street nos rios da Europa Medieval...

Mas, céus!, como me desviei do meu primeiro intento aqui! Recapitulemos: falava eu das curiosidades que tinha encontrado percorrendo o livro de Jean Gimpel até a metade. Uma delas, essa dos moinhos. Outra: os chineses, supostamente, inventaram o relógio mecânico no século XI, os europeus só no XIV. E mais outra, que é o verdadeiro assunto destas claudicantes linhas: ao que parece, a primeira lei anti-poluição que o Ocidente editou foi criada em 1388 na Inglaterra, votada em Cambridge pelo parlamento. E como se chegou a precisar de uma lei dessas? O itinerário não difere muito do que conhecemos ainda hoje em dia. Em primeiro lugar, houve um desmatamento atroz. Gimpel apresenta alguns relatos de como este se deu na França e na Inglaterra. Florestas inteiras foram total ou parcialmente destruídas, para a construção de castelos, casas, para alimentar fornos de forjas; este e ainda muitos outros usos tinha a madeira das castigadas florestas. Um exemplo: o castelo de Windsor, para ser construído, necessitou da destruição de uma floresta inteira, ou seja, 3.004 robles! For Christ’s sake! Sim, leitor, acredito que para você –como o é para mim– deve ser difícil imaginar o que seriam todas essas árvores; mas trate de pensar, como eu, que se cada árvore dessas ocupasse dois metros quadrados (pois eram árvores das grossas), teríamos aí algo como 9000 metros quadrados de floresta eliminados! Pois bem, tal era a situação: as autoridades notaram que as coisas não poderiam continuar desse modo, pois viam todos os dias os bosques sumindo sob os seus olhos. Proibiu-se o corte indiscriminado de árvores e, com isso, uma nova fonte de calor para os fornos e tudo o mais passou a ser necessária. Eis que se partiu para o uso de um tipo de carvão conhecido como hulha ou carvão de mar.

Em algumas décadas, o ar começou a se deteriorar... Londres, segundo Gimpel, foi a primeira cidade a sofrer com a poluição atmosférica; a pestilência da queima de carvão se espalhava, a fumaça e o seu cheiro passou a irritar olhos e vias respiratórias dos cidadãos. Até para cozinhar usava-se a hulha, mas, claro, nas cozinhas do povo: a nobreza afastava-se o quanto podia do contato com o carvão.

Estava o ar, pois, leitor, empestado, as florestas, devastadas. Falta algo? Ó, sim! Uma grandíssima parte da queima de carvão se destinava aos fornos das forjas e estas eram muitíssimas nas cidades. E como é que se forja o ferro, ó digníssimo Sir Reader!? Incandescendo-o e... martelando! Da manhã à noite, os martelos desciam forte sobre os rubros ferros, o som infernal castigava os tímpanos de todos! Gimpel chega a citar um interessante poema francês da época, cujos primeiros versos dizem assim:

Ferreiro negro de fuligem,

todo sujo de poeira,

deixa-me louco o barulho

dos seus golpes redobrados.

Estava tudo péssimo, ó leitor, mas resta ainda um cálice de calamidade para verter-se sobre o homem medieval: a água dos rios mudava-se em sangue... Não ao modo bíblico, é claro! É que os matadouros lançavam seus restos aos rios, assim como os deixavam ao ar livre, empestando ainda mais o ar. E veja você as contas francesas de 1293 apresentadas por Gimpel, referentes ao abate de animais: 188522 carneiros, 30116 bois, 19604 vitelos e 30784 porcos. Os restos de toda essa carnificina sendo aventados ao rio Sena... Bela coisa, na é mesmo?

Temos aí, leitor, os traços mais marcantes da Herkunft, da procedência da sobredita primeira lei anti-poluição. No fim do século XIV, o parlamento inglês votou e sancionou, visando à pureza do ar e da água, a lei: proibia-se o aventar detritos aos rios e o abandono de imundícies ao ar livre. E, como cita Gimpel, esta advertia ainda para as conseqüências ambientais do seu possível desrespeito: “o ar será seriamente corrompido e envenenado, doenças inumeráveis e epidemias intoleráveis grassarão todos os dias”. A modo de profecia, bem ao gosto de um país cristão, a lei prometia calamidades estrepitosas pela sua quebra.

Vê-se mais uma vez como é injusto o trevoso epíteto da Idade Média. O primeiro ditame de “consciência ecológica” expressada juridicamente vem deste tão vilipendiado período da história ocidental.

Deixo-o por ora, ó leitor, com essa sugestão de leitura, essa obra de Gimpel, tão informativa e estimulante da imaginação.

Vou-me satisfeito por, quem sabe, havê-lo entretido com mais algumas linhas, escritas com esmero e a esperança de obter a mui alta distinção de tê-las percorridas pela sua atenção.

Saudações e até a próxima!

Rico.

Um comentário:

JUCA JARDIM disse...

hahaha... rachei com essa do cara perder uma dinheirama e ainda acabar moído pelo pau de massa da esposa!!! :D (pra ver que a "acumulação primitiva do capital" não tinha nada dessa moleza que Marx insinuava!)...