terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Zonagônia, sua melodia

Ó leitor! Em que momento nos juntamos novamente! Há tempos que não nos encontramos, e verás que não venho em boa hora... Pode ser que depois d’hoje não queiras mais passar os olhos pelo que escrevo. Mas eis que insisto em cá pôr as linhas que seguirão, porque é o desejo que me move, de emanar os tormentos e lamúrios! Peço-lhe o perdão já de saída.

Eis que hoje vamos de... não sei bem o que é! Mas trata-se de algo como uma reflexão sobre a vida, sobre o andar dos dias, o passar do tempo e das coisas a que alguém é obrigado a aventar-se, por instinto ou por hábito adquirido das passadas gerações... ou realmente –segundo acredito– pelo desejo consciente de vivê-las, arriscar-se, esperançoso de bom sucesso!

Mas não é só dos meus miolos que retirarei o material que há de nos amparar na reflexão para a qual o convido, ó leitor! Pois encontrei a expressão perfeita do que eu queria dizer –coisa pasmante!– nas bocas de dois personagens de Rubem Fonseca, o grandioso mestre da prosa ultra-violenta contemporânea. Irei, leitor, encadear os dois arrazoados ao sabor da necessidade expressiva daquilo que hei de dizer hoje. Sem contar, por discrição, o que me leva a fazer a ligação entre esses dois textículos, limito-me ao essencial.

Eis que há vezes em que acreditamos estar indo bem, levantamos e dormimos acompanhados da felicidade e do sossego, e vivemos com o olho no além adiante, planejando, desenhando paisagens, sentindo o cheiro dos ventos e os sabores do futuro, sempre certos de seguir acompanhados do bom e do bem presentes. Mas, ó leitor, isso acaba no tempo em que resplandece um raio! Não sabíamos, mas algo acontecia! E, com o trovão, sabemos que aconteceu. Tudo o que tínhamos a nos acompanhar, no sereno-viver de que falava, esfuma-se no silenciar do estrondo... Diante da paisagem deserta, fica-nos a ressoar um agudíssimo, dentro do crânio; daí em diante, nos acompanha, onde quer que formos, quando dormimos e quando acordamos, na rua, no trabalho, no banheiro, mesmo lá no fundo do frigir da nossa omelete dominical. Damo-nos conta de que não é do ouvido lesado. Descobrimos que há uma corda muito fina, que parte daquela região perto do esôfago, onde sentimos tudo o que é ruim, pavoroso e causador de agonia –chamo-a de zonagônia–, passa pela espinha dorsal e chega ao cérebro. O som é, na verdade, essa corda vibrando, num agudo que nem um Paganini poderia alcançar no seu violino. E, como eu disse, fica ressoando, dia após dia, onde quer que nos encontremos ou seja lá o que estivermos fazendo. Deixemos que um dos personagens de Fonseca descreva como é ter esse agudíssimo vibrando ao infinito:

acordo sentindo uma aporrinhação enorme e penso depois de tomar banho passa, depois de tomar café passa, depois de fazer ginástica passa, depois do dia passar passa, mas não passa e chega a noite e eu estou na mesma, sem querer mulher ou cinema, e no dia seguinte também não acabou. Já fiquei uma semana assim, deixei crescer a barba e olhava as pessoas não como se olha um automóvel, mas perguntando, quem é?, quem é?, quem-é-além-do-nome?, e as pessoas passando na minha frente, gente pra burro nesse mundo, quem é?

Mas eis, leitor, que não é só isso! Pois queremos tanto silenciar o vibrar da cordinha, mas não cessa. Ah, não cessa! Cordinha tensa, repuxa a zonagônia! E os dias passam, trabalho-casa-coisas-casa-trabalho, e o agudíssimo lá, (“quem é? o que?”). Um dia, mais duro que os demais, de repente, algo quebra: como os vidros que não podem com a voz de uma super-soprano –coisa que só vi em filme, aliás–. Outro personagem de Fonseca tem as melhores palavras para isso:

aconteceu uma coisa que nunca pensei que acontecesse comigo. Eu estava sozinho. Em determinado momento fiquei pensando em Norma com tal intensidade que comecei a ficar sem ar, com a sensação de que o meu coração ia parar, o que devem sentir as pessoas prestes a morrer. Então subitamente comecei a chorar. Havia uns trinta anos que eu não chorava; é uma coisa estranha que preciso contra em detalhes. Após algum tempo os olhos se fecham; você sente as lágrimas molhando o seu rosto e uma sensação de alívio como se você fosse um homem envenenado e uma veia se abrisse e lentamente pusesse para fora todo o sangue ruim, fazendo-o sentir-se melhor a cada gota que saísse –mais leve, mais bom, mais puro, mais digno, mais feliz na sua automisericórdia. Depois disso (se você está sozinho) você sente vontade de gemer um pouco e suspirar fundo e fazer umas caretas de dor, contrair o rosto fechando os olhos com força, como se estivesse em frente a um espelho ou a uma câmera cinematográfica. É um abandonar-se à dor que faz a dor doer menos. A dor a seco é pior.

O volume do agudo abaixa, ah sim abaixa! É todo um remédio, como diz o personagem, espécie de sangria.

Tenha presente, ó leitor!, que não é necessário que você me acompanhe no dito aqui! Quando falei em “nós”, foi, assim, de modo genérico, como quando os anglo-saxões dizem “one can do this, or do that”; “um”, dizem eles, um qualquer. E, perdoe-me o leitor, mas é mais a esse “qualquer” que proponho esses pensamentos de hoje do que a você, que tenho em tão alto conceito, e jamais chamaria de “qualquer”! Antes, o “qualquer” sou eu!, e ouso, vez por vez, pedir-lhe a sua atenção.

Mau modo de terminar os escritos deste ano, eu sei! Mas eis que o agudíssimo, melodia da zonagônia, sobrepôs-se a tudo o mais, e não pude trazer-lhe nada melhor desta vez, caríssimo leitor. Mas passa (depois do ano novo, da volta ao trabalho, do carnaval, da páscoa, passa...). Prometo estar recomposto no próximo ano. Estarei cá, esperando-o. Grato sou, e muito, pela sua paciência e boníssima vontade no ano presente. Passe bem!

Vale!

Nenhum comentário: