sexta-feira, 30 de maio de 2014

Meu pitaco de fácil leitura

Estimulado pelo último bramido -de meu conhecimento- acerca do "caso" Patrícia Secco, dou aqui o meu pitaco sobre o assunto. Os conhecidos deste desconhecido que vos fala já sabem algo do que penso sobre isso, por lista de e-mail ou por debate em sala de aula.

Do que apareceu na imprensa, os únicos ditos que julgo razoáveis são os de José Miguel Wisnik, publicados n'O Globo, sob o título "Machado Copidescado", e de José Maria e Silva, no Jornal Opção (com este, tenho discordâncias, abordadas adiante). Wisnik faz um escrutínio linha a linha de algumas páginas, demonstrando a falta de metodologia de Secco, cujas simplificações são desnecessárias em alguns pontos e inexistentes em outros (que, caso houvesse alguma consistência metodológica, pediriam uma modificação). Maria e Silva chega apontar até inversões de sentido. Estes são os únicos argumentos de valor, os quais subscrevo, pelo menos quanto à formalidade do raciocínio: somente a má qualidade é que pode ser julgada.

Somente a má qualidade. As demais invectivas e protestos da mais profunda indignação estão, a meu ver, viciados de preconceitos e falsos dilemas. E estes apresentam-se (novamente) elencados na coluna de Sérgio da Costa Ramos de hoje, publicada no Diário Catarinense. Recebi-a por e-mail, em formato JPG, pois é conteúdo para assinantes. Coloco a imagem aqui:
 
Começarei pelo mais tolo: a "adulteração" da obra de Machado. Este já havia sido propalado pelos autores da petição online "Ministério da Cultura do Brasil: Impeça a alteração das palavras originais nas obras da língua portuguesa". O sofisma é montado por meio da sobreposição de duas coisas diferentes: a) uma lei para proteger a obra dos autores; b) uma mentira descarada. 

Invoca-se a lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998:

Art. 24. São direitos morais do autor:

IV - o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra;

§ 2º Compete ao Estado a defesa da integridade e autoria da obra caída em domínio público.

Art. 27. Os direitos morais do autor são inalienáveis e irrenunciáveis.


Esta, vê-se, trata da "integridade" da obra no que diz respeito a proteger o autor de "prejuízo" ou de ter as "reputação ou honra" atingidas. Ora, onde é mesmo que há "prejuízo" a Machado no caso em questão? Qual é a natureza desse "prejuízo"? Ninguém o diz, e admitem os autores da petição esta nebulosidade: "Ora, ainda que se interprete a presente lei, argumentando "ausência de prejuízo" a Machado de Assis (ou a qualquer autor falecido), tal interpretação é subjetiva e contestável. Consideraria o autor aceitável tal modificação em sua obra? Como sabê-lo?"

Em seguida, passa-se a elencar as "boas" modificações. Estas são adaptações em sentido estrito: para quadrinhos, teatro, cinema etc. Pois bem, como sabem nossos defensores de Machado que ele mesmo aceitaria aquelas e não as da Sra. Secco? Não o sabem! Sugerem também que, no máximo, sejam colocadas notas de rodapé. Novamente, já que invocam a impossibilidade de se ter a opinião de Machado, pergunte-se: Machado aceitaria notas de terceiros? O critério "Machado aceitaria" é de uma tolice sem par. 

Ao fim da petição, logo após o elogio das "boas adaptações", parte-se para a mentira descarada: "O teatro faz isso, o cinema faz isso. Livros são adaptados. Todavia, nestes casos, há a informação CLARA E EXPLÍCITA de que se trata de versão, adaptação [...] O leitor tem o direito de ser claramente informado que NÃO está lendo o autor original, e sim um texto modificado por outro autor". Muito bom que haja gente assim preocupada, empenhada em proteger o público desta informação OBSCURA E IMPLÍCITA, que leio na terceira folha do "boneco" da edição-Secco d'O Alienista:





Voltando ao artigo de Costa Ramos, é desta sorte de legalismo infundado, visto acima, que padece a opinião que o colunista cita em seu artigo, ao invocar as palavras de Deonísio da Silva, do qual se diz que irá acionar o Ministério Público. Consta na citação: "A senhora Secco não tem direito de fazer o que fez. A obra de Machado de Assis não é dela. É patrimônio do povo brasileiro".  Ora, e qual patrimônio está sendo lesado? Será que a Sra. Secco foi aos arquivos da Biblioteca Nacional e procedeu à sua "criminosa" emendatio?

A via pseudo-jurídica que se tenta trilhar nestes casos é, a meu ver, sem saída: não esclarece o prejuízo à obra, nem os ataques à honra ou à reputação.

Em meus ouvidos, as palavras de Deonísio da Silva ecoam com força: ela não tem direito - DireitO - DIREITO! Podem estar a dizê-lo em sentido estritamente jurídico; eu ouço um pouco mais: é o som de um preconceito acadêmico, de um espírito de guilda. Acadêmico universitário e Acadêmico de Academia de Letras, posto que a ABL também emitiu uma nota de repúdio (que não encontro em parte alguma, nem pesquisando no site da ABL, mas dizem que foi publicada em 07/05). É o preconceito contra o outsider, aquele que não tem o papelucho pendurado na parede, uma honraria da ABL (ou academia de letras estadual), um prêmio literário, uma carreira universitária de humanidades, uma obra acadêmica. Costa Ramos refere-se a Secco como a "professora", com aspas, e a "maquiadora", sem aspas, denotando que ela não é professora. Torce o nariz para a soma "milionária" auferida via Lei Rouanet. De fato, foi pouco mais de um milhão, para a produção de 600 mil exemplares: um custo de menos de dois reais por exemplar - mais barato que uma edição do Diário Catarinense. O horror: ela vai GANHAR dinheiro com isso! O horror: dinheiro "público". O horror: 1/5 do que auferiu Claudia Leitte para uma turnê; pouco menos do que auferiu Rita Lee para gravar um DVD... e, vá lá, um pouco mais do que Humberto Gessinger, para gravar o seu DVD de comemoração de seus 50 anos. O irônico é que todos eles obtiveram mais recursos do que os obtidos pelo Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística (NuPILL), da Universidade Federal de Santa Catarina, para tornar acessível online, em parceria com o MEC, toda a obra de Machado de Assis. De todas maneiras, não se trata de justificar um "erro" com outro. Trata-se, primeiro, de aceitar que, nas regras do jogo de hoje, nada há de imoral no projeto da Sra. Secco. Pelo contrário, como hei-de sugerir, há um vazio, que, sem alternativas melhores, foi preenchido por ela.

O artigo que cito lá no começo, de Maria e Silva, chega a adjetivar Patrícia Secco como "escritora-empresária". Ironicamente, o artigo é também uma invectiva contra a cultura do diploma; o problema é que o faz em nome de um ideal de "alta cultura", mencionando intelectuais self-made, do calibre de Graciliano Ramos e do mesmo Machado de Assis. Inclusive, chega a sintetizar o gênio político de Machado na criação da ABL, que visaria a instituir a Literatura como uma entidade para além do livro, fazendo-a povoar o imaginário social como uma via de ascensão. Porém, o tempore, o mores!, os esforços de Machado nesse sentido deram bom fruto, mas não uma farta colheita. Por mais gente que concorra a feiras literárias e eventos em torno da cultura escrita, a  popularidade do esporte e da música pop (não confundir com MPB) enquanto vias de ascensão econômica e social é muito maior. E por mais genioso que tenha sido Machado ao criar um espaço em que se unem política e literatura, o fato é que a ABL nos dias de hoje confere honrarias a sujeitos do porte intelectual de Ronaldinho Gaúcho. Bela patacoada: um dos caminhos para ser premiado pela Instituição das Letras é ser um jogador de futebol. No espírito dos "abaixo-assinadistas", pergunto-me se Machado concordaria com isso.

Tanto Maria e Silva como Costa Ramos sentenciam: o estado da educação atual é que tem que ser modificado, não Machado de Assis. Ora, para começar, o material é distribuído, se professores e bibliotecários o vão utilizar, é lá com eles. Em seguida, quanto ao estado da educação, sejam lá quais forem as máculas do trabalho da Sra. Secco, esta não seria a primeira medida inerme a ser tomada: a mais recente de que me lembro foi a distribuição de tablets. Para ensaiar um calembour: escandaliza-me o escândalo. Não me dei ao trabalho de investigar o que fazem cada um dos comentaristas de notícias e notas acerca da famigerada adaptação. Sei que encontrei (aliás, ao estilo de Costa Ramos) coisas como "acabaram com Machado". E sei também que as condenações, em grande medida, partiram de pessoas que atuam na docência superior de Letras -há não pouco tempo-, soando-me natural que alguns dos comentários que lhes seguem o tom sejam partidos de seus discentes e, claro, pessoas já formadas e atuantes, também há não pouco tempo, na docência escolar. Todos eles, e este que escreve, fazemos parte do problema. Pode-se chamar o trabalho da Sra. Secco de porcaria, deturpação, lixo, mas a ideia de fazê-lo partiu de uma situação pela que todos nós, educadores, somos responsáveis. 

A partir daqui, e para concluir, cumpro o que prometi logo acima: afirmo que há um vazio, preenchido pela Sra. Secco na falta de alternativas. Antes de haver despontado esta celeuma, para mim, "leitura fácil" significava: texto leve, sem complicações, lido e entendido com rapidez. Pois eu estava enganado, pelo menos em parte. E acredito que muitos estão comigo. Pelo menos em se tratando de língua portuguesa. Eis que "leitura fácil" é também um conceito, elaborado por pesquisadores das áreas de Letras, Psicologia e Educação (principalmente). Uma busca no google scholar  para "leitura fácil" apresenta  1690 resultados. Nenhum dos vinte primeiros resultados refere-se ao conceito de "leitura fácil". Procurei por alternativas, "fácil leitura", "leitura facilitada", mas nada obtive nos primeiros vinte resultados. Em espanhol, "lectura fácil" devolve 9 dos vinte primeiros resultados referindo-se ao conceito. Se associarmos aos termos a expressão inglesa do conceito (easy-to-read) na busca ("leitura fácil / "lectura fácil" + easy-to-read), para o português, o número total de resultados cai para apenas 10, sendo que há um deles referindo-se ao conceito: um artigo de Portugal. No caso do Espanhol, o número total cai para apenas 38; no entanto, já os 20 primeiros resultados são referentes ao conceito.  Para citar um exemplo de instituição com especialistas no assunto, remeto o leitor a este artigo informativo, que fala acerca do trabalho desenvolvido na Universidad Autónoma de Madrid e outras na União Europeia. Este artigo também remete ao chamado "pai" das diretrizes da Leitura Fácil da International Federation of Library Association (IFLA), Bror Ingemar Tronbacke. Resultados de busca no google scholar para [Tronbacke + leitura] ? 1 (Hum): uma monografia, defendida na UFPB, em 2011, acerca da surdez na biblioteca. Para [Tronbacke + Lectura]? 48 (quarenta e oito). Ainda segundo o dito artigo, o público alvo  da Leitura Fácil, dentre outros, é composto de "lectores con suficiencia lingüística (en la lengua oficial o predominante) y/o habilidades lectoras transitoriamente limitadas: inmigrantes recientes y otros hablantes de lengua no nativa; analfabetos funcionales y personas en desventaja educativa, y niños" (grifos meus). Ora, não estão aí incluídos nossos estudantes escolares e até 38% dos estudantes de nível superior?

Esses números são conhecidos de nossos irados articulistas, colunistas e seus séquitos. Talvez os números respeitantes à quase nula discussão do conceito de Leitura Fácil disponível na internet seja-lhes desconhecido. Não posso ser leviano ao ponto de afirmar que no Brasil não se faz pesquisa e produção de material levando em conta o conceito de Leitura Fácil, baseando-me apenas numa "googlada". Mas posso, sim, afirmar que, se há, ainda é pouca, insuficiente. Há um vazio, dentro do qual flutuam quadrinhos, "versões infantis" e "versões infanto-juvenis", no qual pôde entrar, com desembaraço, o famigerado Machado-Secco. Acostumados todos com a situação indefinida, deu-se o choque. Ao ponto em que houve rasgar de túnicas e arrancar de cabelos face ao trabalho da Sra. Secco -concordo, cheio problemas. Este vazio precisa ser preenchido, e, segundo pude perceber, o primeiro a ser feito é ter conceitos postos no lugar. 

Assim como os mais pernósticos dos peralvilhos lançarem-se a esfregar nas fuças do mundo a diferença entre "adaptação" (teatral, cinematográfica, para quadrinhos) e "isso" que "escritora-empresária" e "maquiadora" fez, deveria alguém sopapeá-los com a diferença entre Leitura Fácil e adaptação? Se as adaptações, como não cansamos de nos lembrar, sempre existiram, por que estamos na situação educacional que os detratores da Sra. Secco esgrimem como motivo para impedir a distribuição da obra? 

Meus amigos mais à esquerda costumam "postar" no facebook uma frase que já não sei se é de Bertold Brecht, Ghandi, Malcolm X ou Burke. Algo como: "se os bons não fazem nada, o mal triunfa". Pois então, meus amigos, pois então... 

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