terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Esperança, Raiva, Saudade, Desesperação: Cartas de amor!

Eis que voltei, ó leitor! Adianto-te que hoje me dou a liberdade de te tratar por “tu”, parece mais cômodo ao escrever neste momento. Mas não acredites que isso diminui o infinito respeito que por ti nutro!

Hoje vamos de recomendação. Venho recomendar-te um livrinho que me caiu nas mãos, divertido, belo, inspirador: tudo o que um livro precisa ser. É de poesia e se intitula Cartas de Amor. A autora é Paola Rettore e contém colaborações de poetas, artistas plásticos e “performers”. É um livro bilíngüe, com textos em espanhol e português. Diria até trilíngüe, pois há um quê de “portunhol” em alguns passos. Ainda o acompanha um DVD, com vídeos das performances de Marcelo Kraiser.

O que farei aqui é o seguinte: vou mencionar passagens que tiveram grande significado para a humilíssima pessoa que aqui se dirige a ti, leitor. Assim, não afirmo que elas são o que há de melhor no livro, apenas indico os momentos que, a meu ver, corroboram as palavras da personagem de um filme de que gosto muito –que, claro, conheces, leitor–, O carteiro e o poeta: “a poesia não é de quem fez, mas de quem precisa dela” (essa é a idéia, pelo menos; não lembro literalmente...).

Nas Cartas de Amor lêem-se, se não todos, pelo menos quatro dos principais componentes da experiência do amor. Refiro-me, claro, ao amor, digamos, erótico, que envolve desejo, um tanto de possessividade, ciúmes... Quais os componentes? Hei de mencioná-los como em tópicos, e a ordem nada diz sobre a importância dos termos, ela é aleatória: Saudade, Esperança, Desesperação e Raiva.

Começarei pela Raiva, que é um sentimento expresso de forma muito divertida. A passagem que cito está na primeira Carta (sempre que o texto estiver em espanhol, acrescentarei uma tradução). Sabes, leitor, aquela reação diante de um afronta amorosa que parece ser “canonizada”, a famosa “vou-rasgar-todas-as-cartas&fotos”? Bem, a Carta em questão encontra uma alternativa muito do jocosa, indo um pouco além da simples destruição das fotografias:

Voy a romper todas tus cartas. Voy a cortar todos tus rostros que aparecen en las fotos. Voy a pegar una foto de una sandía, no, de una vaca en lugar de tu rostro. (...) Hoy por la mañana empecé a odiarte. Antes de despertar aún te amaba y soñé contigo y te parecías a Nicole Kidman. Pero ahora pienso en ti y te veo con la cabeza de vaca. Imagino que estás fumando con la cara de vaca y botando humo por la nariz de la vaca. MUUU. Vete, vete. MUUU.

[Vou rasgar todas as tuas cartas. Vou cortar todos os teus rostos que aparecem nas fotos. Vou colar uma foto de uma melancia, não, de uma vaca no lugar do teu rosto. (...) Hoje de manhã comecei a te odiar. Antes de acordar ainda te amava e sonhei contigo e parecias-te com a Nicole Kidman. Mas agora penso em ti e te vejo com a cabeça de vaca. Imagino que estás fumando com a cara de vaca e jogando fumaça pelo nariz da vaca. MUUU. Vai-te, vai-te. MUUU.]

Solução original, não é, caro leitor?

Passo agora para a Saudade. É uma das passagens que acredito ser das mais belas do livro, ainda que mantenha um pouco da jocosidade dessa aí encima. A palavra correta não é “bela”... é “terna” (de ternura). Esta se encontra na oitava Carta (segundo a contagem que eu mesmo inventei):

Hace ya 5 meses que no te veo. Ahora lo único que hago es bajar al puerto a ver si veo el barco en el horizonte. Nunca veo tu barco. Llegan los otros. Sin piernas, sin brazos, sin orejas, sin lengua, sin ojos, sin nariz. Yo espero que quando vengas, traigas tus piernas, tus brazos, tu lengua, tu nariz. Pero si tienes que elegir, trae tus orejas, tus piernas, tus ojos, si quieres deja tu lengua y tus piernas, pero sobre todo tus piernas para que no te vayas de nuevo.

[Faz já 5 meses que não te vejo. Agora o único que eu faço é descer até o porto para ver se vejo o barco no horizonte. Nunca vejo o teu barco. Chegam os outros. Sem pernas, sem braços, sem orelhas, sem língua, sem olhos, sem nariz. Eu espero que quando venhas, tragas as tuas pernas, teus braços, tua língua, teu nariz. Mas se tiveres que escolher, traz as tua orelhas, tuas pernas, teus olhos; se quiseres, deixa a tua língua e as tuas pernas, mas acima de tudo as tuas pernas, para que não vás embora de novo.]

Agora, passo para a Esperança. Esse sentimento é plasmado numa imagem dinâmica e estática ao mesmo tempo (creio que extática faz a síntese...): dois trens que se cruzam. Suscita o tempo no qual um afeto infinito pode ser trocado entre dois seres, estremecê-los por completo. Esperança, muita, é também o que se há de encontrar no arremate da carta, como verás, ó leitor! É a sexta carta e está em português:

Esta carta pode ser como olhares trocados a partir de dois trens na mesma estação.

Seguindo direções opostas.

Esta carta pode ser uma aposta de que os trens vão voltar ainda várias vezes.

Esta carta pode apostar que os dois, um em cada trem, ainda serão os mesmos de antes.

(...)

Em cada e toda letra, está esta carta.

Em toda palavra, afinal, espreita uma carta de amor.

Quem nunca procurou a Esperança no mais estúpido bilhete, na mais corriqueira mensagem de celular, no mais formal dos emails... nunca amou! Não é verdade, leitor?

Por último, a Desesperação. A imagem mais impactante, sem dúvida. Eu nunca tinha lido uma expressão tão exata para o sentimento a que se refere esta passagem. Admito não ser nada próximo dum leitor de poesia que mereça essa denominação. Mas atrevo-me a intuir a priori que nunca se cunhou expressão como essa! Está na quarta Carta:

Ahora pienso en ti. Pero no estás aqui. Las horas pasan. Las horas me pasan como hormigas en la cara, mientras pienso en ti.

[Agora penso em ti. Mas não estás aqui. As horas passam. As horas me passam, como formigas na cara, enquanto penso em ti.]

Céus, leitor! Formigas na cara! Certamente, algumas delas mordem! Alguém poderia me dizer que essa passagem deveria ser considerada expressão da Saudade, não da Desesperação. Mas eu discordaria. Uma coisa é ter saudade, querer alguém de volta. Outra é sentir o tempo da separação deste modo, a passar pela face como formigas; expressá-lo numa imagem que chega a ser paralela à da própria morte: ter a boca cheia de formigas. Talvez morrer de saudade seja isso: perder a luta contra o tempo de uma espera ou de uma separação, deixá-lo invadir-nos por completo, enfiar-se na boca, nos ouvidos, nos olhos... como formigas. O tempo me passa como formigas na cara: a Saudade passa a ser Desesperação, está-se prestes a morrer dela.

Por hoje é só, leitor. Li na ficha técnica do livrinho que a tiragem da edição é de apenas cem exemplares. Sinto-me possuidor de um tesouro por ser um dos cem afortunados a possuir um exemplar. Mas se o livro te interessou, encorajo-te a mandar-me um email. Eu escanerizo o livro, faço cópia do DVD, o que for preciso! De todos modos, vão os dados bibliográficos:

RETTORE, Paola. Pequenas navegações: cartas de amor. Ilustrado por Paula Rettore e Marcelo Kraiser. Belo Horizonte: Ed. do Autor, 2008. 60p. + DVD: il. ISBN: 978-85-908778-0-6

Até a próxima!

Rico.

Em tempo (09/02/2009):
Leitor!
Um dos co-autores do livro fez-me a mercê de comentar esta minha resenha! Indicou-me o blog onde se desenvolvem os trabalhos relacionados ao livro! Para que o endereço deste não fique escondido nos comentários à resenha, divulgo-o aqui:

http://pequenasnavegacoes.blogspot.com/

Saudações!

3 comentários:

JUCA JARDIM disse...

Instigantes apreciações. Tenha pois a bondade de me mandar o texto pelo email. Deveras agredecido! Zé.

Marcelo K disse...

Olá,
Como co-autor do Pequenas Navegações Cartas de Amor, agradeço os comentários e convido para visitar o blog do trabalho,http://pequenasnavegacoes.blogspot.com
e também meu outro blog,http://improvisions.blogspot.com
grande abraço do Marcelo Kraiser

Azazel disse...

Muito bom! Fico no aguardo do próximo...