segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

O cãozinho de Schopenhauer


"Ó meu cãozinho barbado,
Tão peludo e tão velhinho!
Ao ver-Te triste e calado,
Pareces meu avozinho!..."

(Ernani Rosas)


Quem diria, ó leitor! Eis que voltei, antes ainda do ano acabar! Não poderia, –ó, não!-- terminar este ano de forma tão taciturna, postando-lhe o texto da última semana, tão desprovisto de esperança e mui melancólico.

Hoje, vamos de filosofia. Claro, peço-lhe que tenha piedade deste pobre sujeitinho que lhe escreve e não exija um tratado ou a última grande tese filosófica! Trago-lhe, sim, melhor dizendo, uma curiosidade filosófica. Evidentemente, representa uma curiosidade, antes, para mim, pois você, já o sei, há de conhecer o assunto de que trato. Meu intuito é, humildemente, lembrar-lhe da questão; quem sabe, estimulá-lo a catar na sua prateleira novamente as páginas de que lhe hei de falar.

Vamos, pois, dar um curtíssimo sobrevôo sobre os animaizinhos de Schopenhauer. Você haverá de ter notado certa predileção da minha parte por este filósofo. E esta existe, de fato. É que, na minha infinita ingenuidade, eu acredito e dou fé ao que ele expõe na sua ética, a Ética da Compaixão. Sim! Creio que se déssemos vazão à nossa compaixão –que, diz Schopenhauer, é um fenômeno universal–, teríamos um mundo melhor.

O leitor há de se lembrar do que há de mais conhecido acerca da doutrina de Schopenhauer: a essência de tudo o que há é Vontade, infinita, cega. E esta Vontade tem “graus de determinação”. Na medida em que esses graus tornam-se mais complexos, formas mais refinadas vão emergindo, das forças elementares da natureza aos seus seres mais acabados, estando no topo, o ser humano. Eis que, a partir de um dado ponto de complexificação, os seres começam a ter uma representação das coisas, passam a ter um mundo, a diferenciar o eu do não-eu, a individuar-se; passam, pois, a estabelecer suas relações com os fenômenos. Por isso, a frase tão conhecida, que dá título à principal obra do filósofo: O mundo como vontade e como representação. Não é que haja dois mundos, são apenas duas faces da mesma moeda: a essência do mundo é vontade, mas o que dele aparece para os indivíduos é representação, ou seja fenômeno, aquilo que se mostra. Como assim? Ora, como eu disse antes, tudo o que há é vontade, a mesma vontade, infinita e cega. Porém, a partir de determinado “grau de determinação” emergem seres que são capazes de intuir a diferença que há entre ele e as demais coisas que o rodeiam. Uma pedra não é capaz disso, mas, por exemplo, uma ameba o é: ela intui perfeitamente que há um outro próximo dela, que não é ela mesma, e que pode esticar os seus pseudópodes e englobá-lo para alimentar-se. A ameba já possui um mundo, por pobre que seja: está ela e o que ela pode englobar. Não é grande coisa, mas já é um mundo, já é representação, ela já lida com fenômenos. Mas! Mas! Mas! Ela, a ameba, como tudo o que há, é, na sua essência, vontade: a pedra, ela e o ser humano são, nada mais, nada menos, vontade. E o mundo, como aparece para a ameba, como aparece para o ser humano, com tudo delimitado (o eu, o outro, o espaço, o tempo etc.), é apenas fenômeno, ILUSÃO! Pois, somos todos, no âmago, na essência, vontade, a mesma vontade.

Pois bem! Sei que a minha exposição da doutrina foi demasiado curta e grosseira! Mas não posso ir muito longe nela, caríssimo leitor, porque, além de lhe estar fazendo uma repetiçãm de lhe estar fazendo uma repetiçe grosseira! Mas ndo delimitado (o eu, o outro, o espaço, o tempo etc) sno. Eis que, a partiro por demais enfadonha, tomar-me-ia muitíssimo tempo --bruto que sou!-- fazer uma descrição mais detalhada. De todos os modos, com o dito, basta para seguirmos! Na essência, tudo o que há é vontade, e a partir de certo "grau de determinação", os seres formados são capazes de intuir um eu do que é não-eu, ou seja, de ter uma individualidade. E eis que, se no topo dos "graus de determinação" está o ser humano, não muito antes estão outros animais, como, por exemplo, o macaco, o elefante e o cão. O que os distingue, segundo a diferenciação clássica que é adotada por Schopenhauer, é que o homem possui razão. E, pela razão, ele é capaz de, digamos, dispor do tempo: além de viver no presente, ele é capaz de "viver" o passado e contar com o futuro; em suma, ele possui uma consciência de si mais refinada. Mas, se isso parece uma grande vantagem, ainda não devemos cantar vitória! Lembre-se, leitor, que Schopenhauer ficou conhecido pelo seu pessimismo! O homem é o mais consciente dos animais, mas, por isso mesmo, é o que mais sofre; pois, como os animais, pode sofrer no presente --quando é agredido, quando tem fome etc.--, mas sofre também pelo passado e pelo futuro! Pela lembrança de uma humilhação, de um ente perdido, ou pelo castigo que haverá de sofrer por um ato recente, pelo diagnóstico de câncer que recebeu agora mesmo... O ser humano é, pois, o animal mais capaz de sofrimento! Ainda assim, não é o único que sofre: os animais supracitados também sofrem e compartilham conosco, pelo menos, um pouco da nossa capacidade de sofrimento. E é o esquecimento dessa nossa comunhão com os animais algo que causa profunda repulsa no nosso filósofo. Sim, leitor! Schopenhauer foi um grande amigo dos animais! E a sua doutrina, quando vertida em clave moral na sua dissertação Sobre o fundamento da Moral, reserva algumas linhas à defesa das inocentes criaturas que alguns seres humanos --muitos, na verdade...- fazem sofrer desnecessariamente. Devo confessar que um dia li algo desta defesa também n'O mundo como vontade e como representação, mas que --maldición!-- não consegui encontrar enquanto elaborava as presentes linhas. Conformo-me com a minha inépcia, e trato de mostrar-lhe a defesa com o que encontrei na mencionada dissertação.

Qual é, digamos, o ponto principal da defesa de Schopenhauer neste caso? Bem, ele deriva do centro da sua doutrina: a essência de tudo é vontade, e a aparente individualidade dos seres é uma ilusão: na sua representação, o cão que um malvado chuta é algo outro, o não-eu do agressor. Porém, do ponto de vista do mundo como vontade, o que temos é a mesma vontade negando a si mesma, vontade agindo sobre vontade. O agressor acredita que o sofrimento do cão nada tem a ver com ele, mas não sabe que ele e o cão são, na essência, a mesma vontade, e o sofrimento é de ambos. Agora, se o agressor, de repente, ouvindo os ganidos do pobre cãozinho, sentir um profundo arrependimento; se, diante da figurinha retraída e peluda sentir-se muito mal e, logo em seguida, a ela se dirigir e lhe fazer afagos --e até pedir desculpas--; se isso acontecer é porque tomou lugar aquilo a que Schopenhauer chamou de compaixão: a ilusão da representação é suspensa e o agressor se dá conta da sua comunhão com o agredido no sofrimento, dá-se conta de que o sofrimento do agredido é, no fim, sofrimento do agressor.

Ora, quem é incapaz de uma experiência assim, está incapacitado para a motivação moral por excelência e é, realmente, uma pessoa manca, kakethica, digna de comiseração. Também, de certo modo, digna de repulsa, como o são, aos olhos de Schopenhauer, aqueles que torturam e matam os animais sem a mais mínima distinção. Vamos, ó leitor, às palavras de Schopenhauer sobre o assunto!

"A compaixão para com os animais liga-se tão estreitamente com a bondade do caráter que se pode afirmar, confiantemente, que quem é cruel com os animais não pode ser uma boa pessoa. Também está compaixão mostra-se como tendo surgido da mesma fonte, junto com aquela virtude que se exerce em relação aos seres humanos. Assim, por exemplo, as pessoas sensíveis sentirão o mesmo remorso, o mesmo descontentamento consigo mesmas, ao ter a lembrança de que, num acesso de mau humor, esquentadas pela ira ou pelo vinho, maltrataram imerecida, desnecessária ou excessivamente seu cão, seu cavalo ou seu macaco, o que é sentido do mesmo modo que a lembrança da injustiça exercida para com os seres humanos, que se chama a voz da consciência punitiva. Lembro-me de ter lido que um inglês que numa caçada na Índia matara a tiros um macaco não pode esquecer o olhar que o animal lançou-lhe ao morrer e, desde então, nunca mais atirou em macacos."

Veja, leitor, a tese seguida do caso! Compaixão para com os animais e bom caráter andam juntos! E até o caçador é tomado de compaixão ao ver o sofrimento causado pelo seu ato! Agora, umas palavras de censura às línguas que insistem em afastar animais e humanos pelo uso de termos diferentes para os mesmos atos:

"(...) encontramos nos caminhos populares a peculiaridade de muitas línguas, especialmente a alemã, que têm palavras próprias para o comer, o beber, o engravidar, o parir, o morrer e para o cadáver dos animais, para não ter de usar as palavras que indicam aqueles atos feitos pelos seres humanos e para esconder, sob a diversidade das palavras, a completa identidade das coisas. O fato de que as línguas antigas não conheçam tal duplicidade das expressões, mas que, despreocupadamente, indiquem a mesma coisa com as mesmas palavras, mostra que aquele artifício lamentável é, sem dúvida, obra da fradaria européia, que, na sua profanação, não acreditava poder chegar suficientemente longe no negar e caluniar a essência eterna que habita todo animal."

Mais ainda, agora com uma pitada sobre o que expusemos sobre a doutrina do autor, somada a um certo impulso anti-judáico-ocidental (dirigido a um certo fisiologista chamado Rudolph Wagner):

"o essencial e o principal é o mesmo no animal e no homem, e aquilo que nos distingue não está no primário, no princípio, no arcaico, no ser íntimo, no âmago de ambos os fenômenos, que, como tal, tanto num como noutro, é a vontade do indivíduo, mas somente no secundário, no intelecto, no grau da força do conhecimento, que no homem, através da faculdade acrescentada de conhecimento abstrato, chamada razão, é incomparavelmente mais alto (...). Em contrapartida, o que é similar entre o animal e o homem é tanto psíquico como somático, deixando de lado mais comparações. A um tal desprezador de animais judaizado e ocidentalizado tem-se de trazer à memória o fato de que, do mesmo modo que ele foi amamentado por sua mãe, também o animal o foi pela dele."

E por último, a passagem de que mais gosto, pela ternura da imagem e porque me lembra um certo cãozinho que você mesmo, leitor, há de conhecer. O tom da expressão de Schopenhauer é de consternação, mas a idéia é muito bonita, ainda que também antiga, mas não perde o seu valor, que é eterno, pois se trata da fidelidade canina:

"Os antigos egípcios, cuja vida toda era consagrada a fins religiosos, punham nas mesmas sepulturas as múmias dos homens e a dos íbis, crocodilos etc.; mas, na Europa, é um horror e um crime o fato de um cão fiel ser enterrado junto do lugar de descanso do seu dono, onde ele, por vezes, esperou a sua própria morte por causa de uma fidelidade e de um apego que não são encontrados no gênero humano."

Que bonito, esse cãozinho que fica ali, sentadinho junto ao lugar do repouso derradeiro do seu dono! Não lembra o nosso queridíssimo Quincas Borba, o eterno cãozinho machadiano?! E, ora, quem diria? Nosso filósofo tão amoroso para com os animaizinhos!

Por ora é só, caríssimo leitor! Agora sim, despeço-me por este ano. Deixei-lhe, lá encima, um desenho --rabisco, melhor dizendo...--, que fiz enquanto matutava estas linhas e pensava no cãozinho de Schopenhauer.



Aufwiedersehen!

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