segunda-feira, 22 de setembro de 2008

A revelação do Sr. B.

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Olá, leitor!
Na semana passada tive que suar as linhas finais de uma monografia... não pude postar o textinho de praxe... furei com você! Mas agora, vejo-me mais livre.
Esta semana, vamos de conto. Este é um que escrevi nas últimas férias de verão, diverti-me muito escrevendo-o e espero que você se divirta lendo-o. Li de novo por cima e não me pareceu mau. Devo, sim, desculpar-me por quaisquer gralhas gramático-ortográficas, se as houver.
Fique, pois, com "A revelação do Sr. B.", que poderia ter por subtítulo algo como "um mistério musical".
Boa leitura!
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O Sr. B. era circunspecto. Tinha perto de cinqüenta anos, vestia-se como um senhor de meia idade: gravata, camisa, colete, suspensório e tudo que a eles se relaciona. Deixava um bigode branco, estilo leôncio-do-pica-pau, alcançar os seus lábios inferiores. Usava grossos óculos, de cor cinzenta, pousados sobre um nariz atucanado, coisa que lhe dava certo ar de dureza e frio. Mas era de trato animado. Isso, porque o trabalho que desempenhávamos para ele, o negócio do qual ele vivia, era tal que eu mesmo pude lhe deduzir a nobreza e a complexidade depois. Tarefa árdua, mas compensadora, a invenção de canções perdidas. Um mercado não muito vasto, que poucos escritórios como o do Sr. B. ao redor do mundo se encarregavam de alimentar. Eu era músico fracassado e entrei nisso. Realizei-me: descobri uma outra faculdade musical, diferente da exigida por instrumentos. Inventar canções perdidas quer dizer: fazer com que a coleção de músicas de uma certa banda nunca seja completa. Isso parece excêntrico, mas essa atividade tem história, divisível em duas fases: antes e depois da rede mundial de computadores. Mas isso não mudou, entenda-se, em nada a nossa atividade de produção, a divisão em duas fases se manifesta apenas no que diz respeito à distribuição. A nossa atividade, a minha e dos demais no escritório do Sr. B., era inventar canções sempre a resgatar, inéditas e sempre vendáveis, que viriam a completar discografias, que viriam a ser mais completas depois, ao revelar-se mais uma canção. E se nos primórdios havia bastante lucro com a venda dessas canções, não ganhamos muito menos depois que passamos a compô-las simplesmente para jogá-las na rede, estimulando as pessoas a acessar e a movimentar dados. Mas isso durou pouco, o negócio perdeu a alma e todos pararam.

Mas nos bons tempos, pois estou falando de uns quinze anos atrás, o Sr. B. se digladiava com outros similares a ele, seus concorrentes, quando as gravadoras chamavam todas as firmas para uma reunião, onde eram distribuídos os nomes dos grupos, bandas, cantores e cantoras que iriam engendrar, em alguma longínqua gravação esquecida, uma canção, que ninguém até então possuía e foi encontrada por um arquivista da gravadora tal.

Nós, do escritório, tínhamos uma só dúvida a respeito do Sr. B. Tratávamos de saná-la pela observação de toda possível expressão sua ao nos entregar os caixotes com as matérias primas dos nossos trabalhos: os materiais das gravações originais. Ele dizia o nome do grupo ou cantor e nós nos atentávamos para algum gesto emotivo, mas nada. O gosto musical do Sr. B, nosso enigma, demorou a ser desvendado. O Sr. B não convivia com a gente fora do escritório, nós apenas o víamos chegar com o seu carro enquanto o esperávamos à porta. Nunca saiu qualquer vestígio de música dentre os roncos do motor do Sr. B. Ele nunca cantarolava, e era indiferente à eminência de alguns dos autores do material que praticamente jogava diante de nós, anunciando seu nome com um sotaque inglês jocoso. Era um homem só, isso era bem notável.

Nós nos lançávamos sobre o material e nos trancávamos cada qual no seu estúdio para trabalhar. Às vezes o Sr. B. trazia duas ou três encomendas e designava algum de nós para fazer uma delas sozinho. Nós tínhamos duas compensações nesse trabalho. A primeira: a cada sucesso emplacado ganhávamos uma ampliação colorida (que afixávamos na parede) do encarte do disco onde a nossa composição havia entrado, disco de qualquer uma das grandes bandas e cantores que atravessaram o século XX. A segunda: por cada sucesso o Sr. B nos permitia encomendar algum componente que pudera nos ajudar no nosso trabalho. Além disso, claro, tínhamos nossos soldos, que não eram maus.

Foi um encarte de disco que me levou a ter consciência de que existia um negócio como esse. Eu era adicto a certa banda, da qual eu acreditava ter tudo, tudo o que eles tinham gravado, lançado e abortado antes de lançar. Claro que esses abortos surgiam como lançamentos posteriormente, e eu os colecionava com afã. Mas eles surgiam, numa certa periodicidade, e eu tinha de colecioná-los daqui e dali, recomprando músicas que já tinha para ter acesso a uma que eu ainda não possuía. Eu tinha o hábito de tirar um fim de semana por mês para ficar deitado num colchão, ouvindo a minha excelente vitrola. Foi num fim de semana desses que tive um deja-vu auditivo, com uma música que havia tempos comprara e não ouvira ainda. Olhava o seu nome no encarte do disco quando identifiquei uma passagem familiar, de meio segundo mais ou menos, num vocal que acompanhava o retorcer de uma nota de guitarra. Tinha certeza de já ter ouvido aquele fragmento nalguma outra seqüência. Horas e horas fiquei procurando o fragmento espelhado desse que me tinha aguçado a curiosidade. Terminou durando dois dias a minha busca, haja vista a quantidade de discos daquela banda que eu tinha. Encontrei o que procurava, e estava certo: um fragmento dessa música estava naquela, que eu comprara inédita. Desde aquele dia comecei a descobrir que havia, a partir de certo momento ao longo dos anos, uma espécie de espectro nos inéditos da minha banda preferida, uma forma primária que se desdobrava nas diversas músicas. Com ouvidos atentos, consegui entender a equação sinistra e maravilhosa que extraia os símiles das inúmeras variações que despontavam de forma virtual das composições originais e permitia desdobrá-los em novas composições. Dediquei-me a investigar qual era o alcance desse procedimento. Encontrei resultados similares na audição de discografias “completas” de outras bandas. Entendi que eu tinha o mesmo talento que possuíam as pessoas dedicadas à extração da mathesis universalis dos universos musicais que marcaram a vida cultural do século, pessoas que fabricam curiosos passados e gravações secretas “só agora vindas à luz”. Gravações que eu e tantos outros comprávamos sem parar. Muni-me de parafernália suficiente para me por a prova: saber se eu tinha os dons práticos da extração daquelas matrizes, quer dizer, não só uma faculdade de recepção, mas uma de produção. E eu a tinha. Compus muitos inéditos da minha banda preferida, até cansar, até conhecer os seus hábitos musicais melhor que eles mesmos.

Mas quem seriam meus pares, quem seriam aqueles que teriam tal audição, como eu? Perguntava-me. E passava os dias obcecado por saber. Era desesperante não possuir qualquer mancha, tatuagem, cacoete ou chaga que pudesse distinguir a mim e a meus semelhantes na multidão. Eu era um comprador muito mais comercial do que colecionador, meus hábitos de consumo de discos me faziam passar por lojas grandes. Passei a buscar as pequenas, mais recatadas, e acertei. Nelas se vendiam raridades, epês, elepês, e cassetes, cedês, claro. Mas o que tinham de muito valor mesmo para mim era os tipos que as freqüentavam. Ganhar confiança naquele ambiente era difícil. Eles chegavam, apoiavam-se no balcão e, com gestos apenas, escolhiam o que queriam ouvir. Era então que havia como que uma intimidação. Eles não conseguiam ouvir em paz a música enquanto eu estivesse por lá. Olhavam-me e eu saía em pouco tempo, fulminado pelos olhares.

Houve um dia em que decidi ficar, sob a vista alta dos ouvintes. Eu tinha certeza que eles ouviam inéditos e discutiam a argúcia do seu inventor. E eu queria muito entrar na discussão, mais ainda porque a música recém passada era uma invenção que eu conhecia e estudara. Metade de outra invenção já estava tocando quando ouvi a pergunta ríspida disparada contra mim: “Achou o que queria, meu chapa?”. Virei-me e metralhei: “Você notou como nos minutos dois com trinta, três com trinta e quatro com trinta há quase um segundo, em cada um, que é o último segundo do solo da “música branca”, do primeiro epê deles?”. Os quatro que ali estavam se entreolharam e sorriram. “O que mais você sabe sobre segundos e fragmentos nômades?”. Fiquei uma hora lhes falando sobre as minhas descobertas, suspeitas e passatempos. Em pouco tempo aqueles homens eram meus amigos e freqüentavam a minha casa, o único que nos assemelhava era a tal capacidade de ouvir e compor as invenções. Trocamos entre nós diversas composições. Eles todos elogiavam as minhas, criticavam-se entre si e eu julgava para mim que somente um deles tinha, como eu, a capacidade plena para a extração das matrizes e composição de invenções. Estabeleci mais diálogo com ele e, aos poucos, começou a me expor as fraquezas das composições dos demais. As suas explicações eram as mesmas que eu tinha para mim.

Foi ele, Fonzo, que me levou ao escritório do Sr. B. Ligou numa manhã, dizendo-me que pegasse o melhor do meu material e o esperasse na frente do meu portão. Ele me levou por algumas avenidas, até entrar numa rua curta que dava num portão. Enfileirou atrás de outros cinco carros que ocupavam metade da ruela. Fonzo tocou o interfone e a porta diante de nós logo estralou e se abriu. O lugar era um pátio com um edifício cinza, cúbico, de cinco andares e janelas opacas e fechadas. “Bem vindo ao escritório do Sr. B”, disse-me. “O pessoal lá da loja, dos discos, não sabem que eu trabalho aqui. Veja, eles são amadores, sabem da coisa, mas não sabem quem faz. Você é bom e pode compor inéditos excelentes. Eu trabalho nisso e em achar gente como você.” Entramos no prédio e subimos quatro andares pela escada. No fundo do corredor encontramos a porta pela qual nos adentramos no gabinete refrigerado do Sr. B. Ele estava de costas para a porta e, quando entramos, virou de frente para nós na sua larga poltrona giratória de couro preto. Com um charuto entre os dedos, parou o seu giro, repetindo a cena do mafioso no escritório. Mas a sua cara não era a de um don Corleone duro e bonachão. Era um ser cinza, com seus óculos cinza e o longo bigode branco e espesso brotando de debaixo do enorme nariz. “É esse o rapaz, Fonzi?”, perguntou a Fonzo. Este acenou que sim. “Tem o seu material, jovem? Fonzio disse que você é promissor! Vejamos!”. Eu fui de forma automática colocando para tocar minhas fitas. Ouvimos longamente, até que o golpe violento do Sr. B. sobre o botão stop deteve o som. Levantei a vista de encontro aos vidros cinzentos. Dentre os bigodes saiu a frase: “O estúdio seis é seu. Tem material esperando lá. Te dou duas semanas. Boa sorte”.

No corredor que levava ao meu estúdio, Fonzo me sorria e dizia “Eu sabia que o Sr. B iria concordar comigo. Olhe que eu nunca o tinha visto daquele jeito ouvindo uma fita de proposta. Você pode ter até levantado uma pista para a resolução do enigma do Sr. B!”. “Que enigma?”, perguntei. “Calma, vai trabalhar. É aqui. No intervalo você vai conhecer os outros e vai saber de tudo, do enigma e tudo mais. O pessoal vai gostar de você. Você sabe mexer nisso tudo, é igual ao da sua casa, só é mais caro e de propriedade do Sr. B. A luz amarela vai acender quando chegar a hora do intervalo. Desça as escadas e vá nos encontrar lá embaixo”.

Até a tal luz acender eu compus três invenções, a partir daquele material que me esperava e que eu já conhecia. Desci e encontrei Fonzo e outros três tipos, de idades aproximadas. Eu era certamente uns quinze anos mais jovem que todos eles. Fonzo tratou de me aproximar, só pude dizer meu nome no fim das apresentações. O primeiro a me cumprimentar era magro, vestia jeans e uma camisa de mangas curtas e tinha uma barba cerrada e escura. O chamavam Baba, porque, disseram, compôs uma invenção que rendeu uma boa grana ao escritório, atribuída a um quarteto de vikings. O segundo a se apresentar disse que o chamavam Estrato, por razões instrumentais óbvias: colecionava guitarras Fender. Era alto, mais magro que o primeiro e tinha mãos grandes, cabeça grande e olhos meio desorbitados. O que Fonzo veio me dizendo que era o “escritório” estava já me parecendo uma espécie de armário cheio de espantalhos. O terceiro tipo era de poucas palavras, “me chamam Nê, de Nêstor”. Eles pareciam não usar nomes. Já tinha visto que Fonzo não era nome, mas não quis perguntar. Todos eles me disseram o seu denominativo e a motivação do mesmo. Eu só pude dizer “Olá, me chamo Ambrósio, esse é meu nome”. “Brósio!, bom nome!”, disse-me o barbudo. Fonzo logo intercedeu, falando sobre as minhas gravações, e logo me perguntou sobre o trabalho que o Sr. B me tinha recém designado. Quando disse que tinha composto três invenções, eles quiseram imediatamente ouvir. Fomos ao meu estúdio e, ao vê-los ouvir o que eu tinha feito, dei-me conta de que eu era muito bom no que eles faziam de melhor. Eles quiseram ouvir o material que eu tinha apresentado ao Sr. B. também. Todos me desejaram, sorridentes, um bom trabalho e saíram, provavelmente cada um para o seu estúdio. No final do dia, que durava oito horas, levei cinco invenções ao Sr. B. Ele ouviu todas, amarelado pela sua luz de leitura. No fim da última se virou para mim e disse “vá descansar, rapaz. Você está dentro, vai ser grande ainda”.

Na manhã seguinte, quando cheguei, os quatro colegas já estavam na porta do pátio, esperando o Sr. B. Quando me aproximei Fonzo disse “aí está, Brósio! Pessoal, ele arrancou uma pista sobre o enigma do Sr. B!”. “Qual?!”, perguntaram os três em coro. “O material que ele trouxe”, disse, “fez com que o Sr. B. ouvisse sem se inclinar! Acho que essa é uma banda que ele realmente gosta, e é uma chave para o resto do seu gosto musical!”. Entendi qual era o enigma. O Sr. B. trabalhava nesse ramo recôndito da indústria fonográfica, um ramo de criatividade e sensibilidade musical extremos, mas não revelava qualquer inclinação para a música. Pegava discos e fitas como costeletas de porco.

Naquele dia conheci os estúdios dos colegas. Vi, penduradas nas paredes, as ampliações dos encartes dos discos onde haviam entrado os inéditos que eles tinham inventado. Inteirei-me da dinâmica do nosso jogo, das leis que regem o mundo dos inventores de inéditos. Para cada encarte na parede, há o galgar uma posição na escala imaginária, de infinita ascensão ao céu dos inventores. Nos meses que se seguiram trabalhei com afinco e, naquele ano, consegui três encartes na minha parede. Eu inventei um dos inéditos de mais sucesso já visto até então. Desbancava até os trabalhos oficiais. Essa música rendeu inclusive a ida de um especialista a um talk-show, para atribuir categoricamente a composição ao já morto autor, que emplacava assim um grande sucesso post-mortem. O Sr. B. me deu o maior estúdio do prédio, que estava no quinto andar.

O Sr. B. tinha-se confiado totalmente em mim. Até subia ao meu estúdio e me interrompia, para conversas curtas. Trocávamos algumas palavras e ele logo me dizia “trabalhe, rapaz. Finja que não estou aqui. Eu sei como me comportar em estúdio”. Punha-me a trabalhar, sentindo-me um pouco observado, mas sem tensão. Eu estava no topo, e os colegas, que ocupavam do terceiro andar para baixo, apenas me olhavam no pátio, sorrindo admirados. Um dia, Baba veio me falar: “Diga aí, rapaz. Você tem conversado como Sr. B. Diga se conseguiu sacar alguma coisa”. E eu tinha sinceramente tentado levar adiante aquilo do enigma, mas, como os colegas, fracassara e admiti a Baba o fracasso. “Ele é hermético quanto a isso, Baba. Nunca me atrevi a pergun...”, ele me interrompeu: “Não! Não pergunte jamais! Nós temos que descobrir”. Nem eu nem ele podíamos imaginar que o mistério do Sr. B iria se resolver pronto.

Pronto mesmo, porque eu vinha notando, havia algumas semanas, que o Sr. B. ia cada vez mais ao meu estúdio, e punha-se a me observar trabalhando e, enquanto eu parava de gravar, ele já mexia na minha mesa, rebobinando e ouvindo o que eu recém fizera. Aos poucos, com o passar das semanas, ele já soltava comentários a respeito do que ouvia. Mais adiante, estes se transformaram em pequenas reclamações. Um dia ouvi: “Está uma merda!”. Mas a merda me rendeu mais um encarte de peso na parede. O Sr. B. estava histérico, algo o estava deixando tenso demais. Quando um dia eu me aproximei do seu escritório, ouvi que gritava ao telefone: “Você duvida! Sabe quantos discos dos grandes eu pus no circuito!? Você sabe bem! Consiga isso para mim, o meu material, o meu trabalho é sem dúvida o melhor, insista com eles! Mostre a eles, em três anos, mais de dez sucessos grandes, eles venderam caixas de coleção a rodo! Quase trinta nos últimos 10 anos! Eu dou uma pérola e eles juntam com a velharia que todos já têm. Juntam tudo e vendem de novo! E só vendem por causa da minha pérola! Pois bem, que dessa vez me concedam a honra, eu nunca pedi nada! Que me deixem fazer essa gravação! Consegue para mim! Me liga com boas notícias”. Eu já havia entreaberto a porta. Duvidava em entrar, pois o Sr. B não tinha sido nada agradável nos últimos meses. Mas tinha que fazê-lo, pois eu ia me demitir. “Entre rapaz! Como vai? Seu equipamento vai bem? Excelente a sua última, rapaz!”. Eu não entendi a boa disposição do Sr. B. A tensão ainda era notável, mas ele sorria, seu bigode se expandia e era possível lhe ver os dentes inferiores aparecendo. Ele me olhou fixamente, sempre com a boca entreaberta. Fez um gesto inesperado: tirou os óculos cinzentos e me fitou com olhos castanhos, brilhantes, focando a mim, mas também algo através de mim. O coração lhe saltava no peito. “Rapaz. Ambrósio. Sou um homem sensato, e tenho consciência de que nos últimos meses eu lhe massacrei. Mas veja, Ambrósio! O nível em que você chegou! Você agora é capaz de tomar o lugar de qualquer um dos grupos, bandas ou o que for, de qualquer um dos mais vendidos de todos os tempos. A você pertence as matrizes, Ambrósio”. Eu me senti meio cavaleiro, meio mago, meio profeta, meio herdeiro do Sr. B. “Toda a pressão, caro Brósio, foi para lhe preparar para o seu feito máximo. Dependo de uma ligação. Ela pode vir a qualquer hora, e você e os rapazes terão de vir a qualquer hora. Vá, rapaz, e fique atento ao chamado.” Desisti da demissão, é claro. Depois de tanta cerimônia eu queria muito saber qual seria o meu feito máximo. O Sr. B. deteve todos os trabalhos e mandou todos para casa, com as mesmas palavras de antes: “estejam atentos ao chamado...”.

Não veio em má hora, nem cedo da manhã, nem noite adentro. Foi numa tarde agradável que soou o telefone. Levantei-o do gancho e brotou metalizada a voz do Sr. B: “Rapaz, esteja em uma hora no escritório. Chegou o seu dia”. Desligou em seguida e eu me senti nervoso com aquilo. Cheguei em quarenta minutos no escritório e os colegas estavam na entrada. Cumprimentaram-me alegres. Fonzo disse que o Sr. B. lhes indicara que hoje deviam estar dispostos a todo tipo de auxílio que eu pedisse. “O enigma acaba hoje”, disse Nêstor, “tem cara de parto isso tudo”. Quando ele terminou de falar, o portão que dava entrada ao pátio começou a deslizar para um lado. Nós ficamos estranhados, porque o Sr. B. nunca o tinha aberto. Quando olhamos para a entrada da rua, vinha um carro forte, preto, que passou do nosso lado, entrando no pátio e encostando no prédio. Nós fomos até ele e o ficamos olhando, nada se mexia dentro. Um novo barulho de motor e distinguimos que vinha um fusca, lindo, com o capô, o teto e o porta-malas preto, as portas e os pára-lamas brancos, brilhoso, lustrado. Mas tinha um detalhe especial: onde devia ir o círculo da Volks, havia um “Mr. B” circundado, cromado. Era muito belo aquele fusca. Mas ficamos os cinco pasmos ao ver que dentro dele vinha dirigindo o Sr. B, sem as suas vestes de praxe. Estava muito diferente. Parou a uns metros de nós e desceu. Tinha aparado o bigode até a normalidade, e usava óculos redondos, de lentes verdes e pequenas. Vestia uma camiseta branca, e uma jaqueta preta e calça jeans. Parecia mais jovem, não era mais o mesmo, isso ao certo. O Sr. B, sacou da jaqueta um rádio transmissor e falou em inglês. As portas do carro forte se abriram diante de nós, e dele saíram quatro homens vestidos de azul, com fuzis, e também um senhor branquíssimo, muito bem vestido, portando uma mala. Desceu dois degraus do carro até o chão e se aproximou do Sr. B. “Good evening, Mr. B. As planned, here are the originals for your work. Be conscious that these are relics”. “Thank you, Sir.”, respondeu o Sr. B., pegando a mala entre as mãos, “they are in very good hands”. Veio andando até mim, parou a dois passos e esticou os braços com a mala sobre eles, como se ela fosse um bebê: “Rapaz, veja o selo deste material. Você sabe o que fazer. Você nasceu para isso. Esses homens vão ficar fazendo a segurança do prédio enquanto você trabalha. Preciso de uma apenas, Ambrósio! Uma! Faça-a grande, como você sabe fazer... como eles fizeram e foram os maiores!”. Deu as costas para mim e foi andando na direção do seu fusca. Eu e os rapazes nos entreolhamos, pasmos com o modo abrupto do enigma se resolver. Inconcebível, o Sr. B. fazendo qualquer gesto de tocar guitarra, ou o mais simples esboço de dança. Mas eu quis dar um arremate. Antes do Sr. B entrar por completo no fusca soltei um assobio alto e agudo. Ele se deteve e pôs o corpo para fora, deixando apenas um braço apoiado na porta. “Diga rapaz, o que você quer?!”. “Gostaria de saber”, eu disse, “se o bê do seu fusca é o mesmo bê que está no seu nome, Sr. B.!”. Ele sorriu por um minuto olhando para o chão e levantou a vista, apartando os óculos da sua cara. “Não, rapaz. O meu bê é apenas bê de ‘Senhor. B’. O bê do ‘Mr. B’, desse belo fusca, é outro... é bê de ‘Míster Beat’!”. Entrou e se fechou no fusca, fez a volta e foi-se portão afora. Nós entramos no prédio. Os homens armados se posicionaram nas portas. Trabalhamos os cinco até o fim do dia. Quando descemos, tivemos que entrar no carro forte com o tipinho branquelo e esperar por uma espécie de checagem que ele fez no material que estava na mala. Liberou-nos com um gesto.

Decidi parar de trabalhar naquilo depois daquele dia, realmente tínhamos atingido o mais alto que se podia chegar. Mas tivemos que nos manter no ramo por mais alguns anos, para poder comer e pagar as contas. Aquela gravação, minha e dos rapazes, foi parar num álbum comemorativo, com direito a caixa, livretos, e tudo o mais. Um grande lançamento mundial. Ainda me lembro do olhar infantil do Sr. B. diante da caixa, dos livretos, seu olhar fixo na página onde figurava o nome da nossa invenção. Era a nossa música ao lado de uma fotografia colorida daquela banda, a proximidade do nome e da imagem indicando, mais do que nunca, que aquela peça fora composta por eles, em alguma sessão perdida. Por eles, a banda que mexia forte com o coração solitário do Sr. B.

Um comentário:

T disse...

que introdução mais machadianas: "caro leitor, vamos de...".

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