quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Os passarinhos, ó céus!

Foi quando eu lia O mundo como vontade e representação, do Schopenhauer, que me deparei com um ditado em italiano: L’uccello nella gabbia canta, non de piacere, ma dia rabbia. Vi que a tradução seria: “o pássaro na gaiola canta, não de prazer, mas de raiva”. O italiano, para quem se letrou numa nação de língua românica, não é uma língua difícil. Logo entendi o que o ditado dizia, mas fiquei abismado com a maneira de se dizer “pássaro” em italiano: Uccello! “Diabos! –pensei– como pode isso significar pássaro!”. Ocorreu-me então ir a outras línguas atrás do passarinho, que canta de raiva na gaiola. Logo vi que, em francês, diz-se oiseau. Isso estava próximo do italiano, mas a consternação continuava, porque em todas as línguas que conheço, umas mais, outras menos, havia uma discrepância grande entre os vocábulos para referir-se aos pássaros. Em italiano, ucello; em francês, oiseau; em português, pássaro; em espanhol, pájaro; em alemão Vogel (com maiúsculo, porque nessa língua os substantivos assim se escrevem); em inglês, bird. “Ora! como pode?, –eu pensava–. Em inglês e alemão, eu até entendo que haja distância para com as línguas românicas, mas por que o italiano, o francês, o português e o espanhol dividem-se dessa forma, os dois primeiros com o radical ou- e as duas últimas com os radicais pass- e paj-?”. Obviamente, só as etimologias podiam ajudar. E se o leitor, curioso como eu, quer saber também, convido-o a continuar pelas linhas que se seguem, num vôo de pássaro sobre as etimologias que desembocam em passarinhos vocabulares tão diferentes!

Começo pelo idioma que me causou a admiração inicial, o italiano. Isso logo esclarecerá o francês também. Esqueci de dizer que “línguas românicas” são aquelas que se originaram a partir do latim vulgar (pois o leitor não tem por que estar sabendo dessas coisas!), assim, sabendo que o italiano, o francês, o português e o espanhol são línguas românicas, o leitor poderá entender por que fiquei assim, “de cara” com o passarinho. Mas voltemos ao italiano: Uccello. Eis que o latim, pai do italiano, referia-se às aves assim mesmo como o fazemos em português: avis. Mas o leitor merece também saber que, segundo o que os estudiosos chamam de “pronúncia reconstruída”, a letra v, em latim, pronunciava-se como o nosso u, ou seja, aquela avis pronunciava-se “auis”. Agora, uma galinha, um avestruz, são aves também, assim, o pássaro, se posto ao lado dessas aves, logo faz ver que ele, antes de tudo, é menor: ao lado de uma galinha, de uma águia, o pássaro é “pequenino”; ele é pois, não somente uma avis, mas sim avis-cellus, logo, um avicellus, uma avezinha! Picurruchinha! Daí, lembrando da pronúncia do v, vemos que a avezinha, o passarinho, dizia-se “auicellus”. A partir daí, não é difícil imaginar como, no italiano, o passarinho é aquele uccello. O leitor só não pode me perguntar como a pronúncia foi-se transformando, ao ponto daquele a do avicellus ter desaparecido... aliás, pode, mas só posso responder “nescio” (não, leitor! não o estou xingando de néscio! Essa palavra significa, em latim, “não sei”). O mesmo princípio deu-se com o francês, de avicello, para oiseau, é o radical latino avis (“auis”) que está ali, junto com essa “queda” do a que eu não sei explicar.

Mas então, –cáspita!–, como foi que no português e no espanhol, línguas tão românicas como o italiano e o francês, aconteceu de vir a referir-se àquele avicellus vulgo-latino pelos vocábulos pássaro e pájaro? É que, já na idade do latim vulgar (que durou mais ou menos até o século IX, quando as línguas vernáculas começaram a se estabelecer), dentre os tantos avicellus que gorjeavam pelos céus medievais das províncias romanas, havia um que a gente ainda hoje conhece e ouve todos os dias: o pardal. Mas, o leitor deve ser advertido de que há e houve muitos pardais pelo mundo, e os havia na Europa dos romanos, ou seja, diversos tipos de pardal. Assim, o latim vulgar referia-se a diversas espécies de pardais pelo nome passarus. Então, o nosso pássaro em português, o pájaro dos espanhóis, é um daqueles avicellos, daquelas avezinhas que os nossos vulgo-latinos ascendentes viam e ouviam.

Foi assim, pois, que os italianos e franceses adotaram, para referir-se aos pássaros, o nome que em latim vulgar dava-se às avezinhas em geral e que os espanhóis e portugueses adotaram o nome de um dos tipos de avezinhas. Depois de informar-me a respeito disso, até que simpatizei mais com a primeira denominação, avicellos, e, logo, pela denominação dos italianos, uccellos. Por algum motivo que desconheço, parece-me que os uccellos são mais passarinhos que os passarinhos. E, ao meu ouvido e gosto vulgo-latinizados, chamar os avicellos e ucellos de bird ou Vögel soa até depreciativo! Mas o que sei eu dos germanos para julgar-lhes as expressões usadas ao referir-se aos meus avicellos! Os germanos, sim! que tantos lindos poemas dedicaram à natureza, devem ter os seus motivos para tê-los chamado assim, motivos que se mantiveram vivos e desembocaram no inglês e no alemão, línguas germânicas.

Agora, o leitor há de perdoar-me a pobreza de dados sobre como os descendentes desse povo adotou bird e Vogel para referir-se aos avicellos. Somada à minha ignorância, está a dificuldade, mesmo para os estudiosos da cultura germânica, em sondar os primórdios das línguas germânicas. Vamos ao inglês, pois, leitor. Tantos dados me faltam, que posso apenas dizer que, em Old english, os bretões referiam-se aos pássaros pelo vocábulo fugol, e usavam bridd para significar algo como “pássaro novo”. Talvez bridd era como diziam aos filhotes dos pássaros, ou seja, o bridd era o filhotinho do fugol. Só isso –ai de mim! – posso dizer sobre o inglês bird. Mas, vendo agora o alemão Vogel, vemos que aquele Old english que dizia fugol está muito próximo do gótico fugl, de onde provém o alemão Vogel. Salvo engano, esse -l na terminação da palavra em alemão é uma espécie de diminutivo. Lembro-me de um amigo bávaro que me ensinava algumas coisas sobre o alemão falado na sua terra natal: o que no alemão padrão hoje em dia diz-se Mädchen (senhorita, jovemzinha), com essa terminação -chen indicando o diminutivo, na Bavária diz-se Mädchel, com esse –chel fazendo de diminutivo. Parece pois que em Vogel, fugol e fugl já está implícito o diminutivo, o pássaro já é passarinho... Só posso desculpar-me por tanta conjectura e míngua de certeza no respeitante aos germânicos.

Chega ao fim essa minha ornitolingüística expedição, pois! Deixo, isso sim, o pensamento que desencadeou toda essa curiosidade: o passarinho na gaiola canta, não de prazer, mas de raiva. Não prendamos, ó leitor, os uccellos, deixemo-los gorjear! E deixo também esse estribilho, que ouvi quando era pequenino e morava no Chile:

Chiu, chiu chiu chiu,

chiu, chiu, chiu, cha

canta, canta, pajarito

que tu cantar me alegra el corazón!

Ciao!

Rico.

Um comentário:

Bluuu disse...
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