sexta-feira, 29 de agosto de 2008

O reino imaginário de cada um

Muita gente na infância se deparou com histórias de reinos. Mágicos, perdidos, de todas as espécies, tais reinos povoaram as mentes de milhões de pessoas que se expuseram a relatos orais, escritos e audiovisuais. Será que as pessoas tiveram e/ou têm algum reino predileto dentre aqueles que puderam conhecer? Pergunto-me e imagino-me perguntando para as pessoas. “Escolher o reino de Deus não vale” –dir-lhes-ia eu–, porque quem é cristão o tem por coisa verdadeira e, segundo a doutrina, vai-se viver nele e, por tanto, não é um reino ‘imaginário’ ”.

Eu mesmo já não me lembro de qual reino me encantou quando foi a minha vez. Vagamente tenho imagens de um desenho animado do Rei Artur, outro desenho do reino onde Robin Hood fazia das suas. Depois, há uns anos, chamou-me a atenção o despótico reino inglês pintado pelo filme Coração Valente. Fui, pois, pobre de reinos na infância, ou a minha memória foi-me privando deles. Inclino-me à síntese destas hipóteses: pobreza original de reinos, esquecimento de alguns dos poucos alguma vez possuídos. Não sei se essa “desnutrição infantil” pode-me ter causado algum dano; seja recalque ou idéia fixa, vou escolher esse reino agora, porque me deparei com um que realmente me causou um encantamento, despertou-me simpatia e admiração. Assim, aproveito para falar desse reino e indicar ao leitor o livro em que me deparei com ele.

Houve, ao redor do ano 1100 e seguintes, um reino chamado Normandia das duas Sicílias. Ele resultou da invasão do mediterrâneo feita pelos normandos. Paulatinamente este povo vai tomando regiões da extensão de terra que hoje conhecemos por Itália. Tomam Sicília, depois Reggio, logo Bari. Forma-se, pois, esse reino, Normandia das duas Sicílias, e nele dão-se vários prodígios, dignos de orgulho dessa nossa tão vituperada espécie humana. Eis que nesse reino convivem normandos, sicilianos, bizantinos e muçulmanos. Mas “veja bem”, eles con-vivem. E mais! A chancelaria real tem como idiomas oficiais nada mais e nada menos que o latim, o grego e o árabe. O reino torna-se logo um centro de tradução do grego e do árabe, a arquitetura combina elementos romano-góticos cristãos, tradições bizantinas e muçulmanas. Segundo o autor do livro do qual tiro tudo isto, Jacques LeGoff, restam como monumentos dessa interação as igrejas de Palermo, Cefalu, e Monreale. Ora –e aqui fala a minha imaginação–, se na arquitetura, uma bela arte, produziram-se empreendimentos dessa beleza, o que se terá então produzido no campo das artes “práticas”, como, por exemplo, a culinária?! Será que uma dona normanda não ia à janela da vizinha bizantina e, papo-vai-papo-vem, acontecia um intercâmbio de receitas? Hummm! Isso tem que ter acontecido! E o marido normando chegava em casa e saboreava um tempero diferente, na costela, no pão, num doce...

Será que –minha imaginação ainda...– o filho do vizinho muçulmano não dava uma olhada dissimulada para a filha do vizinho siciliano e –por Alá!-- esta dava uma piscadela, também dissimulada? E, tudo mui dissimuladamente, o nosso jovem muçulmano tangia o alaúde antes da oração do pôr-do-sol, enquanto a nossa jovem siciliana ouvia ao longe? E ainda, o mais dissimuladamente possível, não será que os nossos jovens deram uma fugida numa noite sem luar e se encontraram... e desse encontro nasceu uma linda siciliano-muçulmana, que, na flor da idade, derrubava sicilianos, muçulmanos, bizantinos e normandos à caminho da fonte d’água? Ah! mas isso deve ter acontecido sim! E os suspiros por essa mocinha devem estar ainda gravados nas rochas, num pedaço de cera, numa tábua, o seja lá no que for! Mas há de estar lá, nalgum reduto arqueológico das aspirações amorosas...

Continuando a ler em LeGoff sobre esse reino, a minha bolha-imaginativa explode... novas invasões ocorrem pelo ano 1266, os franceses se apoderam do reino. E este não viveu “feliz para sempre”. Tudo bem, sabemos que existiu e o que foi, e, mui aristotelicamente, o que nele “poderia ter acontecido”. Com isso me basta, minha carência de reino encantado foi saciada e o leitor pelo menos “ouviu falar” desse reino e da obra interessantíssima pela qual eu vim saber da sua existência. É isso, pois! Vale a pena ler A civilização medieval do ocidente, de Jacques LeGoff: nesta encontram-se os mais variados reinos, para todos os gostos –despóticos, cristãos, “bárbaros”– e, ao mesmo tempo, vai-se acrescendo aquela sensação de que a “idade das trevas” é a nossa: nunca houve tanta luz –elétrica!-- e ao mesmo tempo tanta escuridão, espiritual, política, moral... Fique o leitor com esse esboço de reino encantado e com essa sugestão de leitura.

Até a próxima!

Rico.

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